quinta-feira, 10 de outubro de 2013

John Holloway: “Nossa força depende da capacidade de dizermos não”

Para autor de Fissurar o capitalismo, é preciso construir outras formas de se viver cotidianamente
Por Adriana Delorenzo
Holloway: “Ser anticapitalista é a coisa mais comum do mundo. Todos sabemos que o capitalismo é um desastre, o problema é que não sabemos como sair daqui, como criar um mundo digno” (Reprodução)
Romper com o mundo como ele é e criar um diferente. Esse é o objetivo de muitos militantes e ativistas. Mas como fazer para construir uma realidade em que não haja Gaza nem Guantánamo nem poucos bilionários e 1 bilhão de pessoas morrendo de fome? O cientista político irlandês, radicado no México, John Holloway traz esse desafio em seu novo livroFissurar o capitalismo (Editora Publisher Brasil). São 33 teses que explicam como criar rupturas no sistema para não continuar a reproduzi-lo. Do idoso que cultiva hortas verticais em sua sacada como forma de revolta contra o concreto e a poluição que o cerca. Do funcionário público que usa seu tempo livre para ajudar doentes com aids. Da professora que dedica sua vida contra a globalização capitalista. São diversos exemplos trazidos pelo autor, de pessoas comuns que recusam a lógica do dinheiro para dar forma a suas vidas. No entanto, após a rejeição, é preciso tentar fazer algo diferente. É aí que surge o problema. “As fissuras são sempre perguntas, não respostas.”
Professor da Universidade Autonôma de Puebla, o trabalho de Holloway tem influência do zapatismo, movimento que há quase 20 anos vem tentando construir esse outro fazer. No México, essas fissuras têm sido criadas, sem que se espere por uma revolução futura. Como trazido em seu primeiro livro traduzido no Brasil, Mudar o mundo sem tomar o poder, Holloway acredita que pensar em revolução hoje é multiplicar essas fissuras. “Uma revolução centrada no Estado é um processo altamente autoantagonista, uma fissura que se expande e se engessa ao mesmo tempo”, diz o autor na obra recém-lançada. Nesta entrevista à Fórum, Holloway fala sobre os novos movimentos que vêm tomando as ruas em diversos países do mundo, inclusive no Brasil.
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Ótima hora para Fissurar o capitalismo
Fórum – Em seu novo livro, traduzido no Brasil como Fissurar o capitalismo, o senhor propõe que, por meio da recusa do capitalismo, sejam criadas fissuras dentro do próprio sistema. Poderia dar exemplos de atividades que criam essas “rupturas” no capitalismo?
John Holloway – Os distúrbios das últimas semanas [junho e julho] no Rio de Janeiro, São Paulo, Istambul, Estocolmo, Sofia, Atenas, começaram por razões diferentes, mas acho que, em todas as ruas do mundo, todos estão dizendo o mesmo canto: “O capitalismo é um fracasso, um fracasso, um fracasso!” Ser anticapitalista é a coisa mais comum do mundo. Todos sabemos que o capitalismo é um desastre, que está destruindo a humanidade. O problema é que não sabemos como sair daqui, como criar um mundo digno. Os velhos modelos de revolução não servem, temos de pensar em novas maneiras de conseguir uma mudança revolucionária.
Não é uma questão de inventar um programa, mas de observar como as pessoas já estão rejeitando o capitalismo e tratando de construir outras formas de viver, formas mais sensatas de se relacionar. Há tentativas de uma beleza espetacular, como a dos zapatistas em Chiapas, que há 20 anos estão dizendo: “Nós não vamos aceitar a agressão capitalista, aqui vamos construir outra forma de viver, outra maneira de nos organizarmos.”
Podemos pensar também nas muitas lutas atuais contra mineradoras na América Latina, onde as pessoas estão dizendo claramente: “Nós não vamos aceitar a lógica do capital, vamos defender uma vida baseada em outros princípios, vamos defender a comunidade e a nossa relação com a terra”. Ou mesmo podemos pensar em um grupo de estudantes que concordam em não querer dedicar suas vidas a serem explorados por uma empresa e vão caminhar no sentido contrário, se dedicando a fazer outra coisa, criando um centro social, uma horta comunitária ou qualquer outra coisa.
Podemos pensar nesses diferentes exemplos como rachaduras ou fissuras, como rupturas na estrutura de dominação. Quando nos concentramos nisso, percebemos que o mundo está cheio de fissuras, cheio de revoltas. Todas são contraditórias, todas têm seus problemas, mas a única maneira que eu penso a revolução, hoje, é em termos de criação, expansão, multiplicação e confluência dessas fissuras, desses espaços ou momentos em que dizemos: “Nós não aceitamos a lógica do capital, vamos criar outra coisa”.
Fórum – Em seu primeiro livro publicado no Brasil, Mudar o mundo sem tomar o poder, o senhor critica o estadocentrismo de parte da esquerda. Como é possível provocar mudanças sem tomar o poder do Estado?
Holloway – A maneira mais óbvia para alcançar a mudança é por meio do Estado, e, sim, houve mudanças nos atuais governos de esquerda na América Latina. O problema é que o Estado é uma forma específica de organização que surgiu com o capitalismo e que tem tido a função, nos últimos séculos, de promover a acumulação do capital. O Estado, por seus hábitos e detalhes de seu funcionamento, exclui as pessoas, limitando a sua participação, no caso das democracias, no ato simbólico de votar a cada quatro ou seis anos.
Então, se queremos realizar mudanças dentro do capitalismo, o Estado é uma forma adequada, nada mais.  Sabemos muito bem que o capitalismo é uma dinâmica suicida para a humanidade. Se quisermos ir além do capitalismo, não tem sentido escolher uma forma de organização especificamente capitalista, que exclui sistematicamente as pessoas. É por isso que os movimentos de revolta se organizam de forma diferente, de forma includente, pelas assembleias, conselhos, comunas, formas de organização baseadas na tentativa de articular as opiniões e desejos de todos. A única maneira de romper com o capitalismo é por meio dessas formas anticapitalistas.
Fórum – Do livro Mudar o mundo sem tomar o poder para Fissurar o Capitalismo, o que mudou? Houve algum processo ou movimento que o influenciou?
Holloway – Não houve nenhum movimento específico. Creio que depois de 2001/2002, na Argentina surge uma questão. E agora? Para onde vamos? Como manter o ritmo?
E se tornou mais evidente que não é suficiente gritar nas ruas e derrubar governos. Se depois das manifestações do fim de semana temos que voltar a vender nossa força de trabalho na segunda-feira – ou tentar vendê-la –, não haverá mudado muito.
A nossa força depende da capacidade de dizermos “não”, não só para os políticos, mas também para os capitalistas, que eles vão para o inferno.
Para isso, precisamos desenvolver uma vida que não dependa deles. Parece irreal, talvez, mas é o que as pessoas estão fazendo por todos os lados, por opção ou necessidade. Nas fissuras.
Fórum – Recentemente, vêm ocorrendo muitos protestos no Brasil que questionaram as tarifas dos transportes públicos e os gastos públicos na construção dos estádios para a Copa do Mundo, enquanto as cidades têm vários problemas. O senhor fala em seu livro das fissuras espaciais nas cidades. Por que as cidades seriam um campo fértil para essas fissuras?
Holloway – É a obscenidade do mundo de hoje. Começa com as tarifas de transportes públicos ou gastos públicos, ou corrupção ou destruição de um parque – como em Istambul –, mas o que explode é realmente uma raiva contra um mundo obsceno, um mundo de injustiças grotescas de violência que ultrapassa a compreensão, de destruição sistemática da natureza, um mundo que nos ataca em nossos interesses, mas que também nos insulta como seres humanos. Essas explosões que temos visto nos últimos meses ocorrem mais facilmente em cidades onde a obscenidade do sistema se impõe de forma muito agressiva. Mas o grande desafio é como ir construindo espaços para um mundo não obsceno, que vão contra e para além do capitalismo. Esta luta por um mundo digno é o que chamamos normalmente vida, ou amor, ou revolução.
Fórum – Também vimos vários movimentos que questionam a democracia representativa (os 99% contra os 1%), como Occupy e o 15-M na Espanha.
Holloway – Os movimentos dos indignados e os Occupy são parte da mesma explosão de cansaço e raiva. Temos aceitado este sistema que está nos matando por tanto tempo, mas já basta! É o grito da revolta zapatista de 1994 que está ecoando em um lugar após o outro. Basta! O sistema representativo é parte deste sistema obsceno, não faz nada para mudá-lo, só dá mais força. A desilusão segue na eleição de qualquer governo “progressista” (Lula, Dilma, os Kirchner, Obama), abre nos melhores casos outras perspectivas, as pessoas percebem que a mudança não pode ser feita por meio do Estado e começam a pensar na política de outra maneira.
Fórum – No livro, o senhor aborda a questão do tempo abstrato ou o tempo da futura revolução. Como as novas tecnologias mudam a relação entre o presente e o futuro, aqui e agora, e também do trabalho? Por exemplo, qual é o efeito da transmissão dos protestos em tempo real através da internet?
Holloway – O “Basta!”  rompe com o conceito tradicional que coloca a revolução no futuro. Antes se falava da paciência revolucionária como uma virtude: tinha que ir construindo o  movimento, preparando-se para o grande dia, no futuro, o grande dia que nunca chegou, ou se chegou não foi o que pensávamos que seria. Agora, está claro que não podemos esperar, temos de quebrar o sistema atual, aqui e agora, onde podemos. Temos de quebrar os relógios, rejeitar a homogeneidade, a continuidade e disciplina que eles incorporam. Creio que o uso das novas tecnologias para transmitir os protestos é importante, mas não produz o “Basta”, pode dar uma força contagiante que impressione.  F
Serviço
Fissurar o capitalismo
272 páginas
R$ 35
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segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Gilles Lipovetsky: "Hoje, há demasiado de tudo"

Fonte: http://www.jn.pt/Domingo/Interior.aspx?content_id=1535438&page=-1
foto REINALDO RODRIGUES/GLOBAL IMAGENS
Gilles Lipovetsky: "Hoje, há demasiado de tudo"
Gilles Lipovetsky defende que, com a cultura-mundo, caminhamos para um planeta cada vez mais individualista, tecnológico e comercial
 
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A sociedade de consumo transformou por completo a noção de cultura. Hoje, todas as actividades, desde a moda, à indústria automóvel, do turismo ao urbanismo, obedecem às leis da economia, porque tudo tem de ser rentável.
Deixaram de vender produtos, para venderem um estilo de vida. A cultura deixou de ser um mundo exclusivo das elites, para ser um mundo de todos. Esta cultura-mundo, de que falam Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, que unifica as sociedades, é a mesma que permite a cada um de nós ser diferente de outro. É por isso que vivemos numa sociedade desorientada.
No seu mais recente livro aborda novamente a problemática da sociedade hipermoderna, mas centrando-se num novo conceito, o de cultura-mundo. O que é a cultura-mundo?
A cultura-mundo é constituída por cinco grandes lógicas: o mercado, a ciência, a informação, a indústria cultural e as novas tecnologias de comunicação e a individualização. Cinco vectores que estão a presentes em todo o planeta, em graus diferentes, e que fucionam como vectores de unificação planetária, uma vez que aproximam as sociedades, pois, de agora em diante, teremos estruturas e lógicas de modernidade semelhantes em todo o lado. Se formos à China encontraremos cidades similares às europeias, por exemplo. O que pretendo demonstrar é que a mundialização não é apenas o fim do comunismo, as novas tecnologias de informação e o capitalismo. É também uma cultura, uma maneira de pensar o mundo, uma forma de valorizar uma nova hierarquia de valores, e que, nesse universo, a cultura já não é algo nobre. A cultura, hoje, é constituída por esses cinco vectores.
Já não é uma cultura apenas das elites?Exactamente. É uma cultura mundial, que obedece aos mesmos princípios que a economia. Hoje em dia, a cultura vende-se, compra-se, exporta-se. Com a cultura-mundo, a cultura tem que ser rentável, especialmente para os grandes grupos. Como refiro no livro, nos Estados Unidos, a indústria cultural é o bem que mais se exporta. Assistimos a uma mercantilização extrema da cultura, mas, ao mesmo tempo, a uma culturalização do consumo e da mercadoria.
Pode ser mais específico?Tenhamos em conta o início da sociedade de consumo nos Estados Unidos, onde foi construído o modelo Ford-T. Ford queria um veículo universal, não muito caro, acessível à maioria das pessoas. Uma viatura utilitária, sem qualquer adorno, sólida e que andasse. Era este o modelo de Ford. Actualmente, não há indústria automóvel que funcione assim. Fazem-se filmes publicitários, comunicações, criam-se fundações para ajudar as crianças. Uma marca, hoje, não vende apenas um produto, vende uma cultura, um estilo de vida. Contratam-se designers, publicitários, creativos, que investem mais na marca do que no produto.
Ou seja, o mais importante não é o objecto, a sua utilidade, mas sim o que este representa?Isso é a cultura. O mundo do primeiro capitalismo era o mundo do investimento, da construção - estradas, caminho-de-ferro, portos, pontes, produção de electricidade, indústria pesada. Com a sociedade de consumo tudo isso começou a mudar e a acelerar. Hoje, vivemos o capitalismo das marcas, do hiperconsumo, onde há tanta escolha entre produtos semelhantes. Antigamente, na moda, tinhamos a alta costura, representada por Paris, e a confecção industrial, que fabricava as calças e vestidos para as classes populares. Hoje, olhemos para a Zara. A Zara tem centenas e centenas de lojas, que não são lojas de luxo. O código de luxo foi absorvido pelas marcas populares. É uma cultura de massas, mas é a cultura do sentimento, do imaginário, do valor, do estilo.O consumidor dos bens de luxo, para fazerem a diferença, terão que apostar em algo mais do que o simples objecto.
O centro desta cultura-mundo está nos Estados Unidos?Os EUA são o centro porque é a potência económica predominante. Mas com a cultura-mundo, como todos sabemos, os EUA e Ocidente em geral perdem a sua hegemonia. A China é já a segunda potência mundial. A cultura-mundo rege-se por duas lógicas: por um lado, revela uma certa de unificação através dos cinco factores que mencionei atrás. Ao mesmo tempo, o Ocidente perde a centralidade. Outrora, a modernidade era apenas o Ocidente, que a impôs através do colonialismo. Hoje, já não é assim. O Ocidente passou a ter concorrência. A China também já vai à lua, por exemplo. O Ocidente já não tem o monopólio da pesquisa e da modernização, o que nos leva a concluir que a cultura-mundo provavelmente não tem um centro, tem vários. Mas, por outro lado – e isto é muito importante - com a cultura-mundo há uma certa unificação planetária. Vejamos o caso da economia em que os métodos de gestão são os mesmos por todo o lado. Antes não, havia a economia comunista, que era diferente. A gestão económica, a lógica de competição é planetária, as técnicas utilizam-se da mesma forma em todo o lado. Mas há um crescimento tremendo da unificação planetária. Unificação que, contudo, não significa similitude.
Tendo em conta a unificação planetária de que fala, a cultura-mundo representa a o desaparecimento das tradições locais, da identidade nacional de cada um dos países?Não. Nem da identidade nacional, nem da religião, da língua, nem mesmo do paladar. A McDonald's, por exemplo, não faz o mesmo tipo de hambúrguer em todo o lado. O cinema indiano não é o mesmo de Hollywood. Se por um lado, a cultura-mundo aproxima as sociedades – porque têm as mesmas marcas, os mesmos produtos -, por outro, contibui para a diversificação dos indivíduos. O colectivo assemelha-se, mas o indivíduo diferencia-se nesse colectivo.Este é um ponto muito importante. As culturas locais, as culturas nacionais, não vão desaparecer. O que são as culturas regionais e nacionais? São a língua. E o mundo da cultura é a língua. Na Europa, temos as mesmas tecnologias, as mesmos valores, mas as línguas não são as mesmas. Cultura-mundo não significa o desaparecimento das diferenças culturais, embora as tradições de consumo tenham mudado. Os indivíduos são mais livres e se são mais livres são diferentes entre si, os gostos diversificam-se, pluralizam-se. No mesmo grupo social temos pessoas com gostos muito diferentes. Há uma heterogeneização de comportamentos e de gostos.
A cultura-mundo é a libertação do indivíduo?
Absolutamente. É um vector de aceleração do individualismo, da individualização, que existe mesmo nos países que se mostrem hostis à mundialização. É o caso do mundo islâmico. No Irão, as mulheres têm a mesma taxa de fecundização que na Europa. Significa isso que as mulheres conquistaram o poder de controlar os nascimentos, o que é um exemplo típico de individualização. Mesmos nos locais onde são as leis de Deus que governam, a modernização avança. As mulheres têm acesso à Internet, frequentam cursos superiores, vão a Abu Dabi fazer compras nos centros comerciais. O mundo islâmico pode ter um discurso hostil ao Ocidente, à mundialização, mas há que compreender que essa hostilidade significa o triunfo do Ocidente, das invenções do Ocidente. Há uma penetração muito rápida das técnicas, do mercado. É por isso que a cultura-mundo suscita reacções muito, muito violentas, particularmente contra a emancipação das mulheres. Mas julgo que esse é um fenómeno transitório.
É por tudo isto que vivemos numa sociedade desorientada?Absolutamente. A cultura-mundo acelera a desorientação. Desde o século XIX, que os grandes pensadores ocidentais assinalam este fenómeno, de que a modernidade desorienta. Nietzche fala na morte de Deus, o mesmo é dizer que se perdeu um dos pilares sólidos da Humanidade. Hoje, essa questão é mais complexa, por que não é apenas a questão de Deus que nos desorienta, mas sim tudo. Por exemplo: o que comer? Antes, era tudo muito simples. Comíamos os pratos tradicionais. Hoje, não. Podemos ir a um restaurante japonês, podemos comer fast-food, podemos comer tudo. Nas grandes cidades existem restaurantes de todo o mundo.
Há demasiada informação sobre tudo?Há demasiada informação e, sobretudo, informação contraditória.
Como viver num mundo assim?Não é fácil, porque já não temos os pilares de outrora. Antigamente, havia a religião, as tradições e as ideologias políticas. A religião continua a existir, mas cada um diz o que quer.
A cultura-mundo é a nova religião?
Não, de todo. A cultura-mundo não nos diz o que fazer, a religião sim. É o oposto. A religião diz-nos o que está bem e o que está o mal, o que podemos fazer e o que não podemos fazer aquilo. É muito diferente.
Apesar dessa falência das religiões, o religioso continua a existir nas sociedades.É verdade. A cultura-mundo não fez desaparecer o religioso. Há novos movimentos religiosos, que designamos de seitas, há os evangelistas, os protestantes, que estão a aparecer em grande força em África e na América Latina. Há quem diga que as religiões não têm qualquer utilidade, mas eu considero que a cultura-mundo acabou por acolher os grandes dogmas, não os anatemizou como aconteceu nos séculos XIX e XX. Há quem tenha uma posição radical contra a religião, mas considero que a cultura-mundo permite que cada um construir a sua própria vida livremente, com ou sem religião, ser feliz, livre.
Este novo indivíduo vive muito para a satisfação imediata das suas necessidades.
Vive para a satisfação imediata, mas, ao mesmo tempo, vive para uma sociedade hedonista pura. As pessoas querem essa satisfação, mas, ao mesmo tempo,vivem extremamente inquietas quanto ao futuro, com medo do desemprego. Porque a globalização fomenta estes medos. As pessoas estão preocupadas com as suas reformas.
Daí as grandes manifestações anti-globalização?Sim, mas essas são manifestações ocasionais. O mundo que aí vem não será fácil.
Este indivíduo que vive para o imediato pensa no futuro?Sim, claro, mas pensa no futuro não com esperança, mas sim com medo. O século XX pensava que o futuro seria de bem-estar. Na realidade, hoje vivemos menos bem, mas vivemos melhor. É uma contradição, mas é verdade que vivemos melhor em termos materiais. No Ocidente, a grande pobreza recuou, nos países emergentes, há milhares de indivíduos que deixaram de viver numa situação de pobreza, hoje, vivemos mais tempo. Do ponto de vista material, atingimos o bem-estar, mas no plano interior não. Vivemos deprimidos, ansiosos... É muito difícil.
A crise económica acentuou esse medo do futuro?A crise económica poderá ter aumentado este medo, mas esta situação vem de trás. A crise ocorre estruturalmente, mas a questão-chave é que vivemos num mundo de competição generalizada. Onde há pessoas mais e menos competentes. Os que são menos competentes acabam por perder o emprego e acabam por ter uma baixa auto-estima. O resultado são conhecidos: as grandes depressões, o suicídio e as tentativas de suicídio. É uma sociedade em que se vive melhor, mas não se vive bem.
Mas isso é uma contradição.Sim, é um paradoxo.
Esta é também uma sociedade demasiado dependente da técnica e das novas tecnologias. Já não sabes viver sem os telemóveis, os pc's...Muito grande. Dependemos cada vez mais das técnicas e do dinheiro. Lembro que nos anos 50 vivia-se com muito pouco. Hoje, temos telefone, frigorífico, televisão, carro. O consumidor é mais livre, porque tem mais escolha, mas, ao mesmo tempo, menos livre, porque sem dinheiro não sabemos como ocupar o tempo. Tudo se compra. Se vamos ao cinema, temos que pagar o bilhete. Se vamos à praia, temos que usar o carro. Para tudo é preciso pensar no dinheiro.
Esse é uma cenário muito negro do futuro.Não é negro porque, ao mesmo tempo, esta sociedade oferece muitos possibilidades. Há um século, as mulheres não tinham uma carreira profissional. Ocupavam-se dos filhos, não trabalhavam. Se os maridos não fosse gentis, tinham que se resignar e obedecer. Se calhar, teriam sete ou oito filhos. Hoje, podem escolher o número de filhos que querem e quando querem. Isto não é secundário, é essencial.
Esta é também um sociedade onde se comunica muito, mas se fala pouco, com os vizinhos, com a família, com os colegas de trabalho. Estamos mais isolados. É verdade, mas apenas no sentido tradicional do termo. Outrora, viva-se em pequenas aldeias, onde todas as pessoas se conheciam. Mas a visão ideal que temos dessa realidade – da fraternidade, da solidariedade do grupo - não é verdadeira. Nas aldeias, havia grandes ódios, invejas, tinham medo uns dos outros, de serem amaldiçoados. Não devemos idealizar esse viver em comunidade. Há uns anos, desenvolvi um trabalho sobre a questão da linguagem nas aldeias. A linguagem era utilizada na alta sociedade, fazia parte da cultura nobre. No mundo tradicional, no mundo popular, a linguagem era muito diminuta. Apenas se fala das coisas elementares. Hoje em dia já não é assim. Fala-se de tudo. As mulheres das classes populares já falam sobre sexualidade, por exemplo. Elas lêem sobre isso nas revistas, fazem pesquisas na Internet, discutem o que sentem e o que pensam, protestam. Hoje, comunicamos mais do que no passado, mas como comunicamos mais e com mais exigências, há um sentimento de comunicação básica. O que não é verdade. Mesmo quando alguém está na internet, essa pessoa está a comunicar. Mesmo quando alguém está no Facebook ou em blogues, elas estão a comunicar, elas encontram outras pessoas. Por outro lado, as pessoas saem de casa. Basta ir a um vila ou cidade para verificar que os restaurantes estão todos cheios. Os amigos encontram-se. É verdade que se comunica mais, mas, ao mesmo tempo, há um sentimento de solidão.
Voltando atrás, à questão das identidades nacionais. Há pouco tempo assistimos, em França, a um grande debate sobre esta questão.Sim, mas foi um debate com objectivos puramente eleitorais. Assim que as eleições terminaram, não se falou mais na questão da identidade nacional. A discussão em torno da identidade nacional estava associada à questão da laicidade. O que fazer com a burca, com o véu islâmico, com o facto de as mulheres muçulmanas não poderem mostrar-se aos homens. A questão era a de saber como é que a laicidade podia fazer prevalecer os seus valores respeitando as diferenças. Há diferenças que não são aceitáveis. Por exemplo, a excisão genital. Não é aceitável.
Mas a excisão genital faz parte da cultura de certos povos.Sim, é verdade. Todas culturas são todas respeitáveis, mas se aceitamos a excisão genital, por que não aceitar a escravatura? Aristóteles legitimou a escravatura. A mutilação genital de meninas é intolerável.
Mas essa é a posição das sociedades ocidentais têm.Porque foi aqui que a questão se colocou. A laicidade surge como a única forma de as comunidades viverem em união, separa o cidadão da religião. Todas as religiões são aceitáveis, com a condição de que não violem a liberdade do indivíduo e que não ameacem o exercício das outras religiões. É verdade que no Ocidente julgamos que a laicidade será um modelo universalmente aceite, mas a verdade é que não o é. Penso que vamos viver uma boa parte do século com rupturas no fundamentalismo porque a ocidentalização, a modernização está a ocorrer de forma muito rápida e isto suscita reacções. Penso que essas reacções vão continuar durante muito tempo. É difícil de aceitar estas mudanças, os modelos tradicionais ainda existem. São necessárias gerações e gerações para que as coisas mudem. A mundialização, a cultura-mundo, não farão desaparecer as identidades nacionais, embora possam ameaçar outras coisas.
O mundo, tal como o conhecemos, vai desaparecer?Não, o que vai desaparecer é a organização religiosa tradicionalista do mundo, que vai dar lugar a um mundo individualista, tecnológico e comercial. Este é o dispositivo geral para todo o planeta. As diferenças far-se-ão sentir nas traduções políticas. Para uma minoria de países será a democracia liberal, especialmente na Europa e na América do Norte. No resto do mundo, podem existir democracias, mas serão democracias frágeis, não democracias liberais. A cultura-mundo é um factor de unificação, de aproximação das civilizações. Mas, ao mesmo tempo, não podemos dizer que a democracia é o horizonte inevitável da história. Podem ocorrer cataclismos, guerras, e as democracias podem colapsar. Nada está escrito em definitivo no que diz respeito à democracia.
Fenómenos como o nazismo, na Alemanha, o franquismo, em Espanha, serão possíveis no futuro na Europa?
Não creio. Na Europa é a primeira vez, desde o século XX, que não há verdadeiros inimigos da democracia, ideologias que queiram destruir a democracia.
Mas a extrema-direita está a ganhar força em alguns países europeus.Sim, mas a extrema-direita não tem no seu programa ideológico a destruição da democracia liberal. As pessoas votam na extrema-direita porque têm medo. Têm medo da imigração. O voto é uma reacção de defesa contra o medo. A extrema-direita do final da II Guerra Mundial sim, era contra a democracia, hoje, não. Podemos criticá-la, mas não vejo qualquer ameaça real à democracia no Ocidente.
Artigo Parcial

SER(ES) AFINS