terça-feira, 24 de julho de 2012

"Cidades Rebeldes" - Entrevista com David Harvey




17/07/2012 12:07 pm
As Cidades Rebeldes de David Harvey
Entrevista a John Brissenden e Ed Lewis, do New Left Project | Tradução:Daniela Frabasile e Laís Bellini
Acaba de sair (por enquanto, em inglês), um livro indispensável para quem quer debater crise do capitalismo, degradação social e ambiental das cidades e busca de alternativas. Numa obra curta (206 páginas), intitulada “Cidades Rebeldes”, o geógrafo, urbanista e antropólogo David Harvey sustenta pelo menos três ideias polêmicas e indispensáveis, num tempo de crise financeira, ataque aos direitos sociais, risco de desastre ambiental e… rebeliões contra o sistema. Elas estão expostas em detalhes em entrevista que Harvey concedeu a John Brissenden e Ed Lewis, do excelente site britânico New Left Project.
A primeira provocação do geógrafo – que é também um dos grandes estudiosos contemporâneos de “O Capital”, de Karl Marx (veja a área especialmente dedicada ao tema, em seu site) – diz respeito ao papel das grandes metrópoles. Harvey discorda de dois tipos de pessimismo. Estes grandes centros para onde fluem as multidões de todo o mundo no século 21, diz ele, são bem mais que templos da desigualdade, da vida automatizada e cinzenta, da devastação da natureza.
É a elas que afluem – e lá que se articulam — as multidões às quais o capital já não oferece alternativas. Esta gente estabelece novas formas de sociabilidade, identidade e valores. É nas metrópoles que aparecem a coesão reivindicante das periferias; novos movimentos como Occupy; as fábricas recuperadas por trabalhadores em países como a Argentina; as famílias que fogem ao padrão nuclear-heterossexual-monogâmico. Nestas cidades, portanto, concentram-se tanto as energias do capital quanto as melhores possibilidades de superá-lo. Elas não são túmulos, mas arenas. Aí se dá o choque principal entre dois projetos para a humanidade.
A segunda hipótese de Harvey diz respeito à própria (re)construção de um projeto pós-capitalista. O autor de Cidades Rebeldes está empenhado em identificar e compreender formas de organização social distintas das previstas por um marxismo mais tradicional. Ele reconhece: ao menos no Ocidente, enxergar na classe operária fabril o grande sujeito da transformação social equivale quase a um delírio. É preciso buscar sentidos rebeldes nas lutas por direitos sociais empreendidas por um leque muito mais amplo de grupos e movimentos. Não cabe nostalgia em relação às batalhas dos séculos passados: é hora de tecer redes entr os que buscam de muitas maneiras, nas cidades, construir formas de vida além dos limites do capital.
Mas esta abertura ao novo não significa, diz Harvey (e aqui está sua terceira provocação fundamental), aderir a modismos. O autor saúda o surgimento de uma cultura da horizontalidade e da desierarquização, nas lutas sociais. Mas sugere: para enfrentar um sistema altamente articulado, será preciso construir, também, visões de mundo e projetos de transformação que não podem ser formulados no chão de uma assembleia local de indignados. Harvey teme que o horizontalismo – grosso modo, a noção de que tudo deve vir das bases e ser debatido em assembleias – acabe se transformando num fetiche. Seria, ele adverte, refazer pelo avesso a obsessão dos antigos Partidos Comunistas pela autoridade e centralização. A entrevista completa vem a seguir (Antonio Martins).
John: Você diria que há um argumento central em “As Cidades Rebeldes: Do direito à cidade à Revolução Urbana”, ou o livro reúne diversos temas?
David Harvey: Um pouco dos dois. Se há um argumento central, ele está nos capítulos 2 (“As raízes urbanas das crises capitalistas”) e 5 (“Reivindicando a cidade para a luta anticapitalista”). O capítulo 2 é essencialmente sobre as relações entre capital e urbanização; o 5, sobre a oposição entre o capital e a urbanização. O conflito de classes está basicamente nos capítulos 2 e 5.
John: Você fala sobre as rendas do monopólio e as contradições intrínsecas a esse processo. Poderia explicar essas contradições e o significado delas para sua análise?
David Harvey: Argumenta-se que capitalismo tem a ver com competição, algo muito repetido e valorizado. Mas basta falar com um capitalista para descobrir que ele prefere o monopólio, se houver essa possibilidade. O que existe na verdade, por parte do capital, é uma incessante tentativa de evitar situações competitivas por meio de algum truque monopolista.
Por exemplo, o fato de dar nome e marcas a produtos é uma tentativa de colocar neles um selo do monopólio. É por isso que temos o swoosh do Nike [a seta estilizada que caracteriza a marca], ou ícones parecidos, que tornam certos produtos diferentes de qualquer outra coisa. Esta tendência ao monopólio é permanente. Ao escrever A Arte da Renda, eu quis chamar atenção sobre como os capitalistas gostam de chamar algo de original, autêntico, único. Eles adoram o “marketing da arte”. Há, portanto, um fluxo enorme de capital em direção a qualquer coisa que se possa facilmente monopolizar.
John: Mas uma vez que esse processo começa…
David Harvey: Bem, num certo aquilo que não era uma mercadoria de marca transforma-se em algo menos exclusivo, uma commodity. Esta tensão sempre existe. Veja, por exemplo, a modernização dos portos urbanos. O primeiro processo foi muito bom, todos diziam “que interessante”. Agora, quando você vai a muitas cidades do mundo e lhe perguntam: “viu o porto?”, você responde: “vi um, vi todos”. E Barcelona não parece mais tão única quanto antes, porque seu porto [modernizado] se parece com qualquer outro. Rotterdam, Cardiff e, claro, Londres, têm um. Não é mais uma coisa única, se tornou apenas um tipo de taxa urbana comum.
John: Você argumenta um espaço se abre, nessa tensão…
David Harvey: Sim, acho, por exemplo, que a qualidade de vida em uma cidade frequentemente é algo definido por seus habitantes, sua forma de vida, seu modo de ser. Para que isso se torne único, o capital depende da inventividade de uma população para fazer algo, para fazer algo diferente. O capital tende a ser homogenizante. As pessoas frequentemente fazem o diferencial, produzem atrações únicas, existe um tipo de relação aí. Isso significa que os movimentos populares podem ter espaço para florescer, para tentar definir alguma coisa que é radicalmente diferente.
John: Você pode apontar exemplos de onde isso está acontecendo?
David Harvey: Sim. Em Hamburgo, existe uma área, o bairro St. Pauli, que era cheio de squats [ocupações de prédios abandonados, em geral feitas por jovens e imigrantes]. Eles criaram um ambiente único, muito diverso. Múltiplas etnias, classes, uma vida urbana muito intensa. O setor imobiliário, muito presente em Hamburgo, havia transformado a cidade em algo muito homogêneo. De repente, perceberam que existe esse bairro incrível, e agora estão tentando apropriar-se dele, comprando casas e alugando-as por um preço diferenciado, porque “não é interessante viver nesse bairro vibrante?”. Esse tipo de coisa você vê nas cidades a toda hora: as pessoas criam um bairro único, ele se torna burguês e entediante.
John: Sabemos que, no interior do capitalismo urbanista, há forças de compensação muito poderosas. Como podemos reverter sua lógica?
David Harvey: Um exemplo: o movimento Occupy desencadeou, em Nova Yorque, uma resposta policial muito feroz e realmente exagerada. Basta você tentar participar de uma marcha, ou manifestação semelhante, para que haja 5 mil policiais em seu redor – e são bem agressivos.
Tentei entender o por quê. Quando os Giants venceram o Superbowl [campeonato nacional de futebol americano], as pessoas tomaram as ruas, interromperam a atividade normal de maneira ainda mais clara e a polícia não fez nada. “Ah, eles estão apenas comemorando”. Mas o Occupy cria, por seu significado político, uma resposta violenta. E se você pergunta por quê, sinto que Wall Street enerva-se muito com a possibilidade de esse movimento virar moda. Se isso ocorrer, haverá uma clara demanda para responsabilizar pessoas por muito do que aconteceu à economia. E o pessoal de Wall Street sabe o que fez, sabe que tem responsabilidade e que pode acabar preso. Penso que dizem ao prefeito e a todas as demais autoridades: “acabe com esse movimento antes que vá longe demais”. Isole-o, faça com que pareça muito violento. Então você acaba com esse tipo de resposta política.
John: Que outras qualidades do movimento Occupy lhe parecem particularmente significativas?
David Harvey: Eu estive fora ano passado inteiro, realmente não acompanhei o Occupy em seu período mais ativo nos Estados Unidos. Mas algo que fizeram foi chamar muita atenção para a questão da desigualdade social, para os bônus enormes pagos aos altos executivos. Estes conceitos estão se espalhando. Antes do Occupy, nada disso era discutido. Agora o Partido Democrata nos Estados Unidos, e até Obama, estão dispostos a tratar a desigualdade social como um problema. Os acionistas das grandes empresas estão começando a votar contra os grandes pacotes de bônus. Acho que tudo isso foi consequência da agenda criada pelo movimento. Mas, como sempre acontece, os poderes políticos cooptam parte do discurso contra o sistema e tentam diluí-lo. Vivemos agora uma fase de certa cooptação, em que os acionistas estão assumindo parte da retórica e Obama, outra parte
Ed: Sobre isso, estamos interessados em suas discussões sobre estratégia. Como ponto de partida, é claro que a concepção tradicional que a esquerda tinha, da classe operária industrial como sujeito revolucionário e agente de mudança, não se encaixa mais no Ocidente. Você pode contar como reconcebeu o sujeito revolucionário, quem pode constituí-lo hoje e como está relacionado às cidades e à identidade urbana?
David Harvey: Para tratar deste tema, faço uma pergunta: quem está produzindo e reproduzindo a vida urbana? Se você olhar para o tipo de produção que prevalece hoje, definirá o proletariado de maneira totalmente distinta da que se contentava em associá-lo ao trabalhador fabril.
Este é o passo necessário. A partir daí, é possível pensar em quais formas de organização são possíveis hoje, entre as novas populações urbanas. Elas são mais difíceis de organizar, precisamente porque não estão em fábricas. Por exemplo, a imensa quantidade de trabalhadores que atuam no transporte de produtos e pessoas, de caminhoneiros a taxistas, como organizá-los?
Há algumas experiências interessantes a respeito, em Nova Yorque e Los Angeles. Politicamente, não é possível falar num sindicato nos termos tradicionais, é preciso criar organizações diferentes.
Ou tomemos o caso dos empregados domésticos. É extremamente difícil organizá-los, particularmente quando são, como em muitos países do Norte, ilegais. Porém, são uma força de trabalho bastante significativa, em muitas cidades. Parte do que estou dizendo é que todas estas formas de trabalho desenvolvem-se nas cidades e são vitais para a reprodução da vida urbana. Por isso, deveríamos nos preocupar em organizar politicamente estes trabalhadores, para influir na qualidade e natureza da vida nas cidades. Em alguns casos, a organização é muito difícil; em outros, pode ser muito vigorosa, mas assume frequentemente formas muito distintas das tradicionais.
Ed: Você acha que a esquerda está mergulhada neste tema, em compreender os desafios e oportunidades com que nos deparamos?
David Harvey: Penso que, historicamente, a esquerda sempre estabeleceu algum tipo de separação entre o que você poderia chamar de organizações de trabalhadores, ou baseadas em classes, e movimentos sociais. Uma de minhas batalhas nos últimos 30 ou 40 anos tem sido dizer que é preciso enxergar estes movimentos como movimentos de classe. Penso que houve uma relutância a aceitar isso, em muitos setores da esquerda.
Veja que esta relutância diminuiu, inclusive em razão da rapidez com que o trabalho fabril desapareceu. Quando cheguei em Baltimore, em 1969, havia algo como 35 mil operários na fábrica de aço. Quinze anos depois, eram 10 mil e na virada do século, apenas 2 mil. Se você quisesse organizar algo politicamente em 1970, você abria um diálogo com o sindicato dos metalúrgicos, porque eles tinham musculatura. Hoje, são irrelevantes. Mas se o sindicato já não conta, como organizar os trabalhadores? Diante desta questão, penso que a esquerda passou a compreender e valorizar melhor os movimentos sociais.
"Sou a favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo no livro de uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que foi terrível nas concepções de centralismo democrático dos partidos leninistas e comunistas"
Ed: Em relação às dificuldades na organização dos grupos de que estamos falando, você investigou uma grande variedade de movimentos, em momentos diferentes. Existem lições particulares que devam ser generalizadas?
David Harvey: A maioria dos grupos desse tipo aparece como de organizações por direitos sociais. Sob esse guarda-chuva, eles podem criar formas organizativas menos restritas que as dos sindicatos convencionais. Agora, uma das coisas que vi em Baltimore foi que um movimento de sindicatos convencionais pode ser hostil a essas novas organizações. O movimento sindical convencional dividia-se: algumas vezes eles apoiavam; mas era mais comum considerarem essas formas de organização como uma ameaça a si próprios.
Penso que, hoje, o movimento sindical convencional está preparado para enxergar essas organizações como cruciais para apoiar suas lutas. Começa a surgir um tipo de coalizão. Na marcha do Primeiro de Maio realizada em Nova Yorque, há pouco, pessoas tradicionalmente ligadas ao movimento sindical juntaram-se aos movimentos sociais.
Sou muito a favor de uma forma diferente de organização sindical, de preferência local, e não por setor. Acredito que os sindicatos convencionais devem prestar mais atenção aos conselhos de comércio locais e aos conselhos municipais. Os sindicatos tendem a se preocupar apenas com o bem estar de seus membros, e uma organização geográfica precisa pensar no proletariado em geral, na cidade. Desse ponto de vista, uma forma de organização diferente pode abranger uma cidade inteira, e unir pessoas  envolvidas em sindicatos diferentes, com todas as suas diferenças, em um tipo de sindicato da cidade, ou uma organização política da cidade.
Ed: No capítulo 5 do novo livro, você relaciona algumas de suas hipóteses sobre organização urbana às dificuldades enfrentadas pelas formas tradicionais de organização da esquerda.  Não apenas no que diz respeito a diferente composição do proletariado, mas também nas relações com organizações autônomas, como cooperativas; ou na dificuldade para atuar na esfera estatal. Você parece sugerir que as cidades são locais de organização especialmente poderosos, e se fosse possível organizar uma cidade inteira, então possivelmente estaríamos muito empoderados. Por que você acha que as cidades são tão importantes? As cidades radicalmente isoladas não sofreriam da mesma vulnerabilidade das cooperativas?
David Harvey: Gosto de pensar nas cidades porque são uma escala maior que uma simples fábrica. Se você observar as fábricas recuperadas na Argentina, tomadas pelos trabalhadores em 2001-2002, verá que uma das dificuldades que surgiriam desse movimento e das associações de trabalhadores envolvidas é que, em certo ponto, como estão imersas num sistema capitalista, vêem-se envolvidas na competição e, em consequência, em práticas de auto-exploração.
Marx tem uma série de passagens interessantes, onde diz que o primeiro passo em direção a uma transformação revolucionária é a tomada dos meios de produção pelos trabalhadores; mas se ficarmos apenas nesse nível, não será suficiente. Se você começar a pensar em organizar uma cidade inteira (e isso está começando a acontecer um pouco na Argentina), as fábricas precisarão de matérias primas — se você está produzindo camisas, precisa de tecido. Mas de onde vem o pano? Bem, você começa a criar uma rede; monta uma rede de cooperativas produzindo coisas diferentes, interligadas.
Você pode imaginar que podem surgir, em uma área metropolitana, economias interligadas dessa forma, o que nos levaria além das possibilidades de tomar apenas uma fábrica específica. Outro fato interessante sobre as fábricas na Argentina é que quando foram tomadas, não permaneceram simplesmente como fábricas. Tornaram-se centros comunitários, integraram realmente os bairros próximos, tinham programas educacionais e culturais. Quando os donos voltaram, uns cinco anos depois, e disseram “queremos nossa fábrica de volta ou levaremos as máquinas”, a população saiu de suas casas para impedi-los. Assim, é muito mais fácil de defender as fábricas tomadas.
Claro que se você tentar criar uma cidade totalmente comunista no meio do capitalismo, provavelmente irá sofrer uma repressão real e violenta. Estará numa situação como a da Síria, em uma cidade como Homs onde há um movimento de oposição muito forte. De certa forma, é uma cidade rebelde, cercada pelo exército e esmagada, com pessoas mortas e outras submetidas.
Penso que há perigo real em ir muito longe e muito rápido. Quão longe uma cidade pode ir, em relação a sua organização? Há exemplos disso: Porto Alegre construiu sua forma orçamento participativo, e agora há orçamento participativo em muitas cidades do mundo. Não é uma medida revolucionária, apenas uma medida transformadora que aprofunda a democracia urbana.
Esse movimento tornou-se significativo. Algumas inovações ocorrem no campo ambiental. Outra cidade brasileira muito interessante é Curitiba, que trabalhou questões ambientais e tornou-se conhecida por organizar seu sistema de transporte coletivo de uma forma ecológica e  sofisticada. As inovações que vieram de lá também estão sendo implantadas em outras cidades. Você pode imaginar uma situação como essa nos termos do que chamo de “teoria dos cupins”[Harvey refere-se aos casos em que é possível corroer por dentro uma estrutura capitalista, sem alarde, até que ela entre em colapso], para transformação social. Esta cidade agora tem uma estrutura institucional diferente, e você começa a ver tais mudanças como algo que se espalha pela rede urbana.
Ed: No entanto, você também é crítico da teoria dos cupins…
David Harvey: É preciso sempre ter cuidado. Quando sou crítico, não estou desprezando. Sustento que algumas estratégias são boas, que as pessoas poderiam adotá-las, mas por outro lado temos que considerar as limitações da realidade. Em que momento você passa de uma “estratégia dos cupins”para outra? Uma das coisas em que realmente me empenhei, no capítulo 5, foi tentar mostrar que há uma variedade de estratégias, para uma variedade de situações e propósitos. Não devemos, portanto, nos restringir dizendo: “esta é a única estratégia que vai funcionar”. Podemos adotar diversas, todas as que forem possíveis. Em alguns casos, não há outra opção além de se envolver em estratégia de cupins; e é possível, ainda assim, fazer um bom trabalho.
John: Você fala no livro sobre a cidade chinesa de Chongqing, onde Bo Xilai, líder do Partido Comunista, liderou processos muito interessantes, até ser afastado. Seria um exemplo dos riscos de ir “longe demais, rápido demais”?
David Harvey: Bem, eu não sou especialista em China, e me pergunto se ele era tão brutal e tão corrupta como está sendo pintado; ou se o retratam dessa maneira porque não gostam do modelo que estava desenvolvendo. Era maoísta na retórica; estava muito preocupado com a redistribuição da riqueza. Estava muito claro que sua tentativa de se tornar poderoso no Comitê Central baseava-se no desenvolvimento deste modelo urbano particular,  radicalmente distinto do que se vê em Xangai, Shenzhen e lugares assim. Nesse aspecto, eu o achava muito interessante.
Agora, tanto quanto sei, o Comitê Central tem adotado, como políticas nacionais, algumas das práticas que Bo lançou em Chongqing. Isso é típico: como sabemos, há na China uma necessidade de incentivar o mercado interno  e alguma preocupação sobre redistribuição da riqueza. Eles observaram um processo local bem-sucedido e talvez tenham decidido enfrentar estes problemas por meio de aumento salários ou construção de habitações, como Bo estava fazendo. Pode ser o modelo chinês de urbanização, que tem sido, na minha opinião, bastante desastroso — ambiental e mesmo economicamente — mude nos próximos anos, nas mesmas linhas que o dirigente afastado estabeleceu. Mas ressalto que são apenas especulações.
Ed: Quero voltar para o que você afirmou sobre abraçar uma pluralidade de estratégias, e uma diversidade de formas organizacionais. Você tem participado de um debate permanente, e às vezes ácido, opondo “horizontalistas” a “centralistas”, ou “verticalistas”. Pode falar mais sobre isso, e como se relaciona a sua análise sobre capitalismo e cidade?
David Harvey: Acho que há hoje um grande apego pela horizontalidade. Tento dizer a meus alunos que gosto de passar grande parte da minha vida no horizontal, mas também gosto de ficar de pé de vez em quando e andar por aí! Porque acho que esta oposição não é útil. Sou a favor de ser tão horizontal quanto você puder. Mas há o que chamo no livro de uma espécie de fetichismo da forma de organização — o que foi terrível nas concepções de centralismo democrático dos partidos leninistas e comunistas.
Repito: a questão é para mim, identificar que tipo de organização será capaz de enfrentar e resolver cada tipo de problema. Acho que a horizontalidade pode ajudar a resolver alguns problemas, em certas escalas, mas não funciona em outras situações. Vivemos num mundo onde há sistemas muito estruturados, a de maneira que você também precisa de estruturas de comando e controle para lidar com eles. Por exemplo, uma estação de energia nuclear é um sistema fortemente estruturado. Quando algo dá errado, você precisa reagir imediatamente, caso contrário tudo acontece muito rápido e explode. A universidade não é um sistema fortemente hierarquizado. Se algo der errado nela; se alguém não aparecer para uma palestra, por exemplo, isso importa pouco: a instituição sobrevive perfeitamente bem. Mas em sistemas fortemente hierarquizados, você precisa tomar decisões com rapidez.
Por isso, pergunto aos horizontalistas radicais: você quer organizar o controle de tráfego aéreo por meio de princípios horizontalista? Quer ter assembleias o tempo todo, na torre de controle de tráfego aéreo? Será que funciona? Como você se sentiria se estivesse no meio de um voo cruzando o Atlântico, e de repente dissessem: “bem, os controladores de tráfego aéreo estão em assembleia, e eles vão nos informar amanhã o que decidiram”? Há muitas atividades que precisam, como essa, de formas bem diferentes de organização. Acho ótimos que as pessoas estejam debatendo horizontalidade, mas é ruim que digam algo como: “ou é horizontal, ou não é nada”.
Ed: Estas ideias vêm de um semi-anarquismo, de uma profunda suspeita diante de qualquer forma de autoridade. Você está dizendo,  basicamente, que ser um radical, um anti-capitalista, ainda é necessário reconhecer que às vezes a autoridade tem o seu papel?
David Harvey: Sim, claro: acho que a autoridade tem seu papel. O problema importantíssimo que se coloca é: como você controla uma autoridade? Quais são os mecanismos de revisão de mandatos e de controle? Porque uma estrutura hierárquica pode, de fato, tornar-se autoritária. Mas há uma grande diferença entre autoritarismo e autoridade. Eu acho que em certas situações, você precisa de alguém para exercer autoridade.
O exemplo ilustre de que muitas pessoas lembrariam são os zapatistas. Mas eles, militarmente, não são horizontais. Sobrevivem até hoje precisamente porque, se você tentar mexer com os militares, eles têm um comando muito bom e estruturas de controle com os quais podem resistir. Se você não tiver isso, será muito vulnerável. Uma das críticas que sempre foram feitas à Comuna de Paris é que, devido a uma espécie de anarquismo filosófico, não havia nenhuma autoridade central para defender a cidade inteira.
As pessoas defendiam seu distrito, mas não toda a cidade. Por isso as forças da reação puderam atacar: não havia nenhuma estrutura de comando e controle para resistir militarmente à invasão.
John: Você fala, no novo livro, sobre Murray Bookchin, e sua abordagem sobre uma saída para este problema de escala. 
David Harvey: Sou um geógrafo, e o pensamento anticapitalista na Geografia sempre foi predominantemente anarquista. Os anarquistas têm uma longa tradição de estar muito mais interessados em questões ambientais e urbanas que os marxistas. Eles exerceram, ao longo do tempo, muita influência sobre as práticas de planejamento. Figuras como Lewis Mumford, que vêm dessa tradição, exerceram muita influência —  inclusive sobre mim, obviamente. E Bookchin é seu herdeiro. Estou interessado em seus ensaios sobre municipalismo libertário: fala sobre formas horizontais de organização descentralizada mas, em seguida, fala também sobre a confederação das assembleias regionais. Foca sobre as necessidades das bio-religiões, em vez de se limitar a comunidades particulares.
Ou seja, ele está disposto a pensar em uma estrutura hierárquica de algum tipo, tenta falar sobre como os poderes foram atribuídos e como devem ser. Recorre a um pequeno truque teórico de Saint-Simon: diz que pode haver gerenciamento das coisas, não de pessoas. Que deve-se gerir, por exemplo, o abastecimento de água ou o saneamento uma região — mas não o que as pessoas fazem. É muito diferente da política real, mas a ideia, e o pensamento de Bookchin em geral — me parece muito interessante.
Participei, há duas semanas, de uma reunião em Nova York, com David Graeber. Murray Bookchin compareceu ao debate. Sua filha estava na platéia, e nós conversamos sobre reunir, num pequeno livro, uma seleção de escritos de Murray sobre o tema. Acho que é um momento muito bom para reintroduzir a tradição anarquista, que pode contribuir para o debate sobre algumas  questões mais amplas. Por exemplo, como você realiza tantas assembleias municipais e não coloca em questão o fato de algumas pessoas, com muitos recursos, converterem-se em ultra-ricos — enquanto muitos, sem recursos, reduzem-se a ultra-pobres?
Ed: Sua visão parece que, no fim das contas, será necessário um Estado. Parece que você acha que Bookchin talvez aceite isso, mas não pode admitir.
David Harvey: Sim. Você sabe: o que se parece com um Estado, é visto  como um Estado, e se expressa como um Estado… é um Estado! Há algo que se pode chamar de Estado capitalista, que poderíamos querer esmagar. Mas há, também, uma forma de organização diz respeito às relações entre diferentes assembleias e grupos. E no plano mundial, você também tem que pensar sobre certas questões como o aquecimento global. Precisam ser abordadas e compreendidas em plano global. Significa que certas  ideias sobre o que fazer têm de ser resultado de uma preocupação mundial.
John: Isso nos leva de volta a um ponto que abordamos antes, sobre as organizações com base geográfica. Existe uma oposição entre o urbano e o não-urbano?
David Harvey: Muitas pessoas me fazem essa pergunta. Elas dizem “a cidade não existe realmente hoje. Você está falando sobre o direito a algo que não existe na mais?” Ou: “você está falando sobre a cidade, por que não sobre o campo. Por que você não fala sobre as áreas rurais?”. Minha resposta é que, de fato, nos últimos cinquenta anos, nós nos tornamos um mundo totalmente urbano, e o que pode ter sido verdade há algum tempo — a existência de uma vida urbana e uma vida camponesa auto-sustentável, independente — desapareceu em grande parte. O que você vê é um contínuo entre o campo e a cidade. Na América Latina, por exemplo, se você está na área rural, as pessoas assistem aos mesmos canais na televisão, dirigem os mesmos carros. Isso é o que chamo de desenvolvimento geográfico desigual no interior do processo de urbanização.
E desse ponto de vista, você diz que as diferenças no interior das cidades são tão significativas quanto as diferenças entre a cidade e subúrbio, e o subúrbio e  as zonas não-urbanas. Há tantas diferenciações no interior do próprio processo de urbanização, que a diferença entre áreas ricas e favela é dramática — na realidade, mais dramática que a que existe entre o que acontece na cidade e fora dela.
Há formas de organização que refletem isso. O movimento dos trabalhadores sem-terra no Brasil tem conexões urbanas muito amplas e as leva muito em conta. Ele não se vê fora do mundo autônomo, mas como parte de um processo geral de urbanização. É como quero ver este processo. Há, em alguns lugares, tentativas de organizar uma cadeia de produção de alimentos para as cidades, que começa nos campos e passa por várias etapas. Vendendo a produção  diretamente aos supermercados, por exemplo — o que me parece uma ideia  muito interessante. Em El Alto [subúrbio popular de La Paz, Bolívia], um dos meus exemplos preferidos, a conectividade entre as pessoas que vivem na cidade e as que estão fora dela é muito, muito forte. Foi ampliada, nos últimos dez ou quinze anos, por causa do agro-negócio e a forma com que o campo tem se transformado em uma paisagem capitalista.
Ed: Então um urbanismo revolucionário uma forma universal de revolução política?
David Harvey: Eu diria que sim. A única razão pela qual me atenho à palavra “cidade” é que ela tem um significado icônico e é foco de sonhos e utopias. Ao mencioná-la, você está invocando o imaginário de uma cidade linda, uma cidade na colina, etc. Continuo com o termo “cidade”, mas entendo perfeitamente que, em um sentido estrito, diferenciado de todo o resto, ela essencialmente desapareceu.
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Preservem este espaço: discurso de Vladimir Safatle aos manifestantes do Ocupa Sampa‏


Vladimir Safatle apresentou, na quarta-feira 26 de outubro, aula pública aos manifestantes do movimento Ocupa Sampa acampados no Vale do Anhangabaú. O texto abaixo foi transcrito pelos integrantes do movimento e originalmente publicado no site do Acampa Sampa. Acompanhe o movimento em suas redes sociais: FacebookTwitterYouTube Livestream.
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Na verdade vocês são uma peça na engrenagem que se montou de uma maneira completamente inesperada e imprevisível em várias partes do mundo. Existem certos momentos na história onde um acontecimento aparentemente localizado, regional, tem a força de mobilizar uma série de outros processos que vão ocorrendo em várias partes do mundo. Ou seja, as ideias, quando elas começam a circular, desconhecem espaço, não conhecem as limitações do espaço, elas constroem um novo espaço. E de uma certa maneira, vocês aqui são uma peça de uma ideia que aos poucos vai construindo um novo espaço, através dessas mobilizações mundiais que tocam várias cidades: Nova York, Cairo, Túnis, Madri, Roma, Santiago e agora São Paulo. Gostaria de lembrar para vocês um exemplo que me parece bastante interessante, de como uma ideia pode ignorar o seu espaço original. Existe um fato histórico, muito impressionante e que nos toca de uma maneira relativamente próxima, porque diz respeito a uma coisa que hoje o Brasil esta envolvido, que é a revolução no Haiti em 1804.
Foi a primeira revolução feita por escravos, escravos que se libertaram do domínio francês. Aconteceu um fato bastante impressionante no interior dessa história que é mais ou menos o seguinte: em 1793, a Assembléia Nacional Francesa, Assembléia Revolucionária Francesa – graças aos jacobinos – resolveu abolir a escravidão nas colônias. Era o resultado de um princípio, princípio da igualdade radical. Se nós defendemos a igualdade radical não é possível que a igualdade valha apenas nesse país e não valha em outro lugar, ela deve ser incondicional, deve desconhecer espaço e deve desconhecer tempo, então ela vale tambám para as colônias. Quando Napoleão assume o poder, tenta rever esse decreto, ou seja, fazer com que a escravidão voltasse a operar nas colônias. Os haitianos se sublevam, e Napoleão manda tropas ao Haiti. E acontece um dos fatos mais impressionantes da história nos últimos 200/300 anos. No momento da guerra, quando as tropas francesas estão de um lado e as tropas haitianas do outro, os franceses comecam a ouvir, cantado do outro lado, a Marselhesa – o hino francês, hino da revolução francesa. Isso arrebentou moralmente com as tropas francesas, eles perderam a guerra. Começaram a se perguntar “Afinal de contas, contra quem estamos lutando? Nós estamos lutando contra nós mesmo, contra nossos ideiais que agora se voltam contra nós. Porque na boca desses ex-escravos esses ideais são mais verdadeiros do que na nossa própria boca.”
Essa é a força impressionante das ideias, elas explodem contextos, explodem espaços, constroem novos espaços, rearticulam uma relação radical, fundamental de igualdade. Por que é interessante lembrar disso agora? Porque de uma certa maneira é o que vocês estão fazendo aqui. Vocês estão conseguindo fazer com que uma ideia, que apareceu inicalmente em um determindado lugar, no mundo árabe, na Tunísia, começe a circular de uma maneira tal que ela vai mobilizando populações absolutamente dispersas e diferentes em torno de uma noção central: nossa democracia não existe ainda, nossa democracia ainda não chegou, nós ainda esperamos uma democracia por vir. O que nós temos pode não ser uma ditadura, não ser o sistema totalitário, mas ainda não é uma democracia. E nenhum de nós quer viver nesse limbo, nesse purgatório entre um regime de absoluto autoritarismo e uma democracia que nós esperamos. Não queremos uma democracia em processo contínuo, incessante de degradação, que já nasce velha. Por isso, quando as colocações das manifestações dos quais vocês fazem parte insistem na ideia de que ainda falta muito para alcançarmos a democracia real, vocês colocam uma questão que até então não podia ter direito de cidadania. Se vocês criticassem a democracia parlamentar, tal como ela funciona hoje, olhariam vocês como arautos do totalitarismo. Se vocês não querem isso, vocês querem o quê? Vocês não querem o Estado Democrático de Direito? Vocês não querem a segurança do Direito Democrático? Então vocês querem o quê? E essa é a questão interessante, vocês recolocam a questão dizendo “Onde vocês estão vendo Estado Democrático de Direito? Eu não encontrei! Como assim, o que isso significa?”.
Se tem uma coisa que a democracia nos demanda, nos exige, é que só se fale de democracia no futuro, só se fale de democracia como democracia por vir. Quando você acredita que a democracia já está realizada no nosso ordenamento jurídico, já está realizada no nosso Estado, na situação social presente, então todas as imperfeições do presente ganham o peso da eternidade, todas as imperfeições do presente parecem eternas, parecem ser impossíveis de superar, parece ser mais que isso, ser criminoso superá-las, parece se colocar em risco quando você tenta superá-las, discutí-las. Então nesse sentido, a primeira coisa interessante em toda essa discussão, vocês estão dispostos a, no fundo, discutir. Não discutir no sentido de fazer alguns acertos pontuais a respeito de algumas questões que girem em torno de nossa política, por exemplo, existe corrupção, vamos nos mobilizar aqui para pedir que fulano, cicrano e beltrano vão para cadeia! Como se independente disso ser feito ou não, como se isso resolvesse o problema de nossa democracia, como se ações pontuais que não tocam problemas estruturais de processos de decisão de partilha de poder, de participação popular, de densidade popular nas decisões do governo, como se não tocando nesse problema nós conseguíssemos avançar de uma maneira ou de outra. Essa, me parece, é uma questão extremamente interessante, por que quando vocês colocam “nós queremos discussão”, isso toca uma questão extremamente clássica, que é a relação entre teoria e práxis. Por exemplo, vejam que coisa interessante, quem passa por aqui não vê nenhuma palavra de ordem, nenhuma proposta no sentido forte do termo, “nós queremos isso, isso e isso!”. Em princípio isso pode parecer um problema, mas eu diria que não, isso é uma grande virtude, porque, se vocês me permitirem, gostaria de fazer um pequeno parênteses na história da filosofia, lembrando de uma resposta de um grande filósofo do século XX, politicamente equivocado, mas que nem por isso deixou de ser um grande filósofo, Martin Heiddeger em um pequeno texto chamado “Cartas ao Humanismo”. Em um dado momento, um sujeito perguntava a Heiddeger, “Afinal de contas, como o senhor entende a relação entre teoria e práxis?”. Ele responde o seguinte, “Eu nunca entendi a dicotomia, a diferença entre teoria e práxis. Porque o pensamento quando pensa de verdade, ele age. Na verdade, a ação mais forte é ação do pensamento, porque o pensamento quando pensa de verdade” – e vejam, pensar de verdade significa pensar na sua radicalidade, pesar na sua força crítica, utilizar a força crítica e a força radical do pensamento – “quando ele pensa de verdade, ele questiona os problemas, os pressupostos, as respostas.” A história é muito interessante, porque a resposta é uma resposta muito inteligente, a resposta era: a verdadeira ação é feita pelo pensamento, não é verdade essa ideia de que muitas vezes nós pensamos porque não queremos agir, na verdade, muitas vezes nós agimos porque não queremos pensar. Muitas vezes nós procuramos um tipo de ação imediata, rápida, por que não queremos nos confrontar com o verdadeiro trabalho. (…) que é o problema, construir o que é a solução, construir o espaço que nós temos pra conseguir pensar hipóteses e pensar aquilo que pode ser mudado e o que não pode ser mudado. Ou seja, colocar a força crítica do pensamento em ação, quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa, possibilidades começam a ser repensadas. Isso significa a verdadeira discussão de manifestações como essa, só manifestações como essas são capazes de fazer (…)
Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentassem. Aumentam por quê? Porque vocês estão dispostos a pensar, estão dispostos a recolocar novos esquemas de pensamento em circulação e essa é a questão fundamental. Nesse sentido, quando isso ocorre, novas ações e novas propostas sempre aparecem. Para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas, quais são os problemas reais e concretos, por qual sentimento de desconforto, de insatisfação e de angústia em relação ao presente, vocês estão descobrindo que o mundo inteiro tem. Mesmo nessas sociedades aparentemente tribais que todo mundo gostava de desqualificar como sociedades árabes, estamos descobrindo uma coisa que nos une a eles. Nós também somos insatisfeitos, descontentes, não queremos reproduzir o presente tal como ele aparece agora, também temos a angústia da necessidade de mudança, de ruptura, isso nos faz a mesma ideia, isso nos faz presentes diante e dentro da mesma ideia. Isso que vocês têm (e devem saber guardar por toda vida porque esse é o motor da crítica) é o profundo sentimento de mal estar e de desconforto que todos vocês sentem e é por isso que estão aqui. É o sentimento mais verdadeiro que vocês tem, e o sentimento mais capaz de colocar vocês em ação. No entanto, vivemos numa sociedade onde o desconforto e o mal estar são vistos imediatamente como índice, como sintoma de uma doença, doença que deve ser tratada o mais rápido possível nem que precisemos dopar todos vocês com antidepressivos ou qualquer coisa dessa natureza. No entanto, é isso que vocês têm de mais concreto, de mais real, pois esse é o índice de que há algo errado. Não com vocês enquanto indíviduo, não com o corpo de vocês, há algo errado com a vida social da qual vocês fazem parte e esse problema da vida social da qual vocês fazem parte se manifesta dessa forma, em cada uma das individualidades que compõe cada uma dessas pessoas que estão aqui. Nesse sentido, é muito importante vocês serem capazes de se mobilizar pra dizer que esse desconforto que eu sinto não é um problema meu, é um problema da sociedade, problema da vida social, essa maneira como a impossibilidade estrutural da vida social constituir uma vida bem sucedida se coloca para cada um de vocês.
Terminaria lembrando o seguinte: hoje, nem acredito, estou chegando aos 40 anos. Lembro que na idade de vocês, 18, 19, 20 anos, nós ouvíamos a seguinte questão: não há mais luta a ser feita, o mundo está globalizado, agora o que vale é a eficácia, o que vale é a capacidade que você tem de que essa forma da proximidade, assumir risco, de ser criativo, de assumir a inovação, de preferência em uma agência de publicidade ou departamento de marketing de uma grande empresa. Mas essa capacidade que vocês têm – o que eu ouvia há 20 anos atrás – levaria vocês a um futuro radiante onde só há vencedores, onde os perderdores ficam pra trás, porque os perdedores têm também um problema moral que não têm a coragem de assumir o risco, ou teriam a coragem de assumir a necessidade de inovação e blá blá… Todos esses caras, foram exatamente esses caras que quebraram o mundo, esses que tinham 20 e agora 40 e que foram todos trabalhar no sistema financeiro e conseguiram arrebentar completamente com uma crise maior que a de 1929, da qual ninguém sabe sair. Mas por que, não era só o problema (…) simplesmente na seguinte questão, eram pessoaas que não acreditavam que o futuro podia ser diferente do presente, que em hipótese alguma acreditavam na capacidade de transformação da participação popular, acreditavam que isso era ideologia velha, envelhecida, no limite do rídiculo. Como assim, participação popular? Isso não existe mais! Manifestações, isso não existe!. Vocês não existiriam aqui, não teriam nenhuma razão de estar aqui presente. Porque a história já tinha acabado, não tinha muto mais o que fazer, então é muito engraçado que essas pessoas que vêem essas manifestações como a que vocês estão organizando perguntem “Afinal de contas, o que eles querem?” E quando vocês falam o que vocês querem eles dizem “Vocês estão loucos! O que é isso!”. Isso me lembra uma amiga psicanalista, que atende em seu consultório mulheres que eram massacradas pelos maridos. Quando elas ficavam insatisfeitas, os maridos perguntavam “O que você quer?” e elas não sabiam e quando falavam o que queriam os maridos chegavam e arrebentavam e é isso que está acontecendo agora. Trata-se de desqualificar, não a pretensa incapacidade de manifestações como essa de conseguir colocar pautas em ação, mas trata de desqualificar o tempo que essas manifestações exigem para que o pensamento possa começar a operar da maneira como ele é realmente capaz de fazer. Porque, percebam bem, se pensarem muito bem, as manifestações que ocorreram esse ano trouxeram pautas extremamente precisas. Vejam, Santiago do Chile parou 400 mil pessoas na rua para pedir educação pública de qualidade, para todos e gratuita – porque só o Chile tem essa capacidade de conseguir ter educação pública que não é gratuita. Então vejam, o que é interessante numa proposta como essa, proposta que parece ser muito regional: um problema da educação pública, mas que no fundo modifica radicalmente a estrutura econômica do país, porque para garantir a educação pública o Estado tem que ter mais dinheiro. E como o Estado faz isso? Taxando mais, tem de cobrar mais impostos. De quem? De vocês que não têm mais dinheiro ou dos ricos que não pagam impostos em lugar nenhum da America Latina? Ou seja, você paga 27%, eu 27% e o banqueiro 27% do imposto de renda. Não existe nenhum lugar no mundo onde isso aconteça. Ou seja, significa uma radical redistribuição de renda através do uso democrático do Estado como aparelho de constituição de uso conjunto de serviços públicos que consigam melhorar a vida do cidadão. Ou seja, uma proposta extremamente precisa.
Vejam, por exemplo, as propostas dos indignados na Espanha: “Nossa democacia parlamentar faliu junto com o sistema econômico que ela sustentava”. Por que a crise econômica ficou desse tamanho? Que maldito sistema político é esse que permite uma crise desse tamanho? Que não consegue enquadrar a ala mais terrorista do sistema financeiro? A ala mais canalha do sistema financeiro continua tendo lucros exorbitantes! Façam esse exercício, vá na internet e peguem os balanços dos bancos que estavam quebrados há três anos atrás. Hoje, todos estão extremamente superavitários. De onde vem esse dinheiro? Vem do Estado que pagou! Que tipo de sistema político é esse que é incapaz de colocar contra a parede quem destrói a vida, a propriedade, que destrói toda a inflação? Fala-se em defesa da propriedade privada, esse bancos conseguiram destruir toda a propriedade privada de um número maior do que Lenin tinha tentado fazer em 1917. Alguem devia ter colocado esse pesosal para trabalhar pra gente!
Vejam bem, as pautas são extremamente precisas e conscientes, de uma clareza e visão cirúrgica. Então é mais uma demonstração de quando o pensamento começa a agir, as pautas reais aparecem. É isso que deve acontecer, o que deve acontecer, entre nós no Brasil, nossa situação vai ser uma repetição de um processo que vai acertando a nossas costas, um tempo novo que está se abrindo. Daqui a 5 anos vão se perguntar “Como que nós acreditávamos durante tanto tempo que nenhum acontecimento real pudesse acontecer?”. Daqui a 5 anos, o nível de descontamento vai ser tamanho, a insatisfação vai ser tamanha, que vão se perguntar como que se acreditou durante tanto tempo que a roda da história estava parada, que não havia muito mais a se esperar, a não ser uma espécie de erro geral da nação a partir dos princípios postos pelo liberalismos econômico. Vocês são o primeiro passo de um grande movimento, uma grande corrida que só começou agora. Aqui tem 100 pessoas, daqui a 3 ou 4 anos isso aqui vai estar com 3 mil, 5 mil pessoas falando a mesma coisa. Esses processos são lentos, tudo por uma razão, como diz Freud, “a razão pode falar baixo, mas não se cala”. Processos como esses são lentos, eles nunca param. Agora vocês perceberam uma coisa fundamental: não dá mais pra confiar em partidos, sindicatos, estruturas governamentais que podem ter suas funções em certos momentos, mas não têm nenhuma capacidade de ressoar as verdadeiras necessidades de rupturas, perderam completamente a capacidade de fazer ressoar as verdadeiras necessidades de ruptura. Veja por exemplo o caso da Grécia, qual partido governa a Grécia? Partido Social Democrata, em princípio de esquerda. Qual partido governa a Espanha? Um Partido Social Democrata, dito de esquerda. Com uma esquerda desse tipo, nínguem precisa de direita. Tá ótimo, porque todo mundo joga no mesmo time. A única diferença é que um faz com dor no coração – “olha vou ter que arrebentar seu salário, não gostaria disso!” – enquanto o outro faz cantando “você era um funcionário público inútil” – e por aí vai. Fora isso, a diferença é mínima, é retórica, isso significa simplesmente o quê? A época onde nos mobilizávamos tendo em vista a estrutura partidária acabou, acabou radicalmente. Pode ser que a gente ainda não saiba o que vai aparecer, a gente sabe o que não vai acontecer, a gente pode não saber exatamente como as coisas vão se dar daqui pra frente, como vai se dar esse tipo de organização mais flexível, mais aberta, democrática, e também muito mais difícil de ser gerida. A gente não sabe o que vai acontecer daqui pra frente, a gente sabe onde o aconteimento não ocorre. Com certeza não ocorre nas dinâmicas partidárias. Você tem uma força de pressão enquanto está fora do jogo, porque quando entra, ela diminui. Então, conservem este espaço!

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Vladimir Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP, bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, professor-bolsista no programa Erasmus Mundus. Escreveu A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo, Edunesp, 2006), Lacan (São Paulo, Publifolha, 2007), Cinismo e falência da critica (São Paulo, Boitempo, 2008) e co-organizou com Edson Teles a coletânea de artigos O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo, 2010), entre outros.
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Os livros de Vladimir Safatle publicados pela Boitempo Editorial já estão disponíveis para venda em versão eletrônica (ebook):
O que resta da ditadura: a exceção brasileira, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle * PDF (Livraria Cultura | Gato Sabido)
Bem-vindo ao deserto do Real!, de Slavoj Žižek (posfácio de Vladimir Safatle) * ePub (Livraria Cultura | Gato Sabido)

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Relacionar o global e o local

Relacionar o Global e o Local: visão da União das cooperativas de consumidores Seikatsu Club do Japão

07 / 2007
Origens
Em 1965, um movimento cidadão de consumidoras se constituiu em torno da preocupação com a segurança alimentar. A qualidade da alimentação (aditivos químicos, poluição pelo mercúrio, etc.) tornara-se uma preocupação maior. Com uma certa rapidez, o movimento compreendeu que não devia somente reivindicar regras restritivas da parte do governo. Por isso, a transformação em cooperativa de consumo era um passo natural. No começo, tratava-se de compra coletiva de leite. Desde aquela época, a cooperativa estendeu sua atividade de compra coletiva a, aproximadamente, 3000 produtos, sobretudo alimentos básicos como o arroz, a carne de frango e de porco, o óleo vegetal, o molho de soja e os ovos.
É pertinente salientar que a palavra “Seikatsu” significa “vida” em japonês. Assim, mesmo se o movimento se tornou uma união das cooperativas de consumo, a filosofia de base encontra ainda suas raízes nesta origem ligada à vida.
Hoje
O Seikatsu Club é hoje uma união de 30 cooperativas locais com mais de 290 000 membros (em junho de 2007), dos quais 99,9% são mulheres. A respeito disto, é preciso mencionar que sob certos aspectos a sociedade japonesa é muito tradicional. Assim, a incitação é forte para que as mulheres casadas com filhos deixem o mercado de trabalho, como era o caso na América do Norte e na Europa ocidental, há uma geração ou duas. Esta situação explica a preponderância das mulheres na esfera do consumo doméstico.
Como está indicado no artigo “ Seikatsu Club Co-operative ”, a atividade principal é sempre a compra coletiva. E isto numa escala de certa importância. No entanto, os princípios de base ligados à segurança alimentar e ao desenvolvimento sustentável estão sempre no cerne da atividade. Assim, os produtores de leite, de carne e de cereais são habilitados e se busca a agricultura mais sadia possível. Por exemplo, os produtores não utilizam alimentos contendo OGM, os frangos não são tratados com antibióticos, etc.
Em relação com esta atividade, a organização se orientou naturalmente para práticas de desenvolvimento sustentável. Assim, o leite é distribuído em garrafas. A porcentagem de recuperação e reutilização ultrapassa 77%. As embalagens com PVC são recusadas e outras campanhas são realizadas como “Stop OGM”.
O Seikatsu Club é proprietário conjuntamente com produtores de leite, de três leiterias. É também proprietário com camponeses de granjas avícolas. Trata-se da única cooperativa de consumidores no Japão que empreendeu tais iniciativas. Atualmente, o Seikatsu Club lança um novo projeto: o objetivo é que consumidores das regiões urbanas se tornem “agricultores durante uma parte do seu tempo” para preservar a agricultura japonesa e o meio ambiente. Uma das razões deste projeto é que mais de 60% dos agricultores têm 65 anos ou mais. A filosofia do Seikatsu Club é que se os consumidores desejam ter uma sociedade sustentável e alimentos sadios, devem assumir responsabilidades nos processos de produção com os produtores. O resultado destas práticas faz que o Seikatsu Club é, não somente uma cooperativa de consumidores, mas igualmente uma cooperativa de produtores.
Novas iniciativas sociais
No decorrer dos anos, os membros lançaram coletivos de trabalhadores. Hoje, há mais de 700 coletivos, com aproximadamente 20.000 membros. Como não existe lei sobre as cooperativas de trabalho no Japão, os membros foram obrigados de utilizar o estatuto jurídico “sem fins lucrativos”, mas eles funcionam como se fosse uma cooperativa (propriedade dos membros). A extensão das atividades é muito grande: preparar refeições para pessoas da terceira idade, ajudar em domicílio, tomar conta de crianças, fazer artesanato, reciclagem, etc.
Compreendendo que não bastava reivindicar junto às autoridades locais, os membros se engajam diretamente na política apresentando candidaturas nos conselhos locais da região metropolitana de Tóquio. Deram-se o nome de “Rede Seikatsusha”, o que significa “Rede dos moradores”. Hoje, há mais ou menos 140 edis locais, somente mulheres, eleitos sobre esta base de preocupação.
No nível local: o Conselho cooperativo comunitário
O Seikatsu considera que para mudar globalmente a sociedade, é preciso construir uma sociedade “cooperativa”, no sentido de “sociedade que coopera”. Assim ele visa a criação de Conselhos comunitários locais (especialmente em Tóquio) que seriam compostos do conjunto das organizações do território: cooperativas, produtores locais, movimentos para a cidadania, sindicatos, coletivos de trabalhadores, associações, instituições de ensino, etc. O objetivo é o atendimento pela própria comunidade. Os princípios são mais ou menos semelhantes àqueles do desenvolvimento local sustentável ou do desenvolvimento econômico comunitário como é conhecido no Canadá.
No nível global: uma visão transformadora da esfera pública
Realizaram que o conjunto dos desafios econômicos e sociais estão interligados, que o conjunto se tornou “glocal”, isto é que o global e o local são tão interligados que é preciso agir em todas as instâncias, do local ao global. Desafios tais como os OGM, as regras da OMC, a pobreza e as guerras forçam a concebermos uma “comunidade global” da mesma forma como concebemos comunidades locais ou nacionais. Sua visão se afirma assim:
Acreditamos que chegou o tempo para as cooperativas desempenhar um papel importante, tanto nas suas próprias comunidades como, enquanto organização sem fins lucrativos mais importante no mundo, de construir a nova esfera pública glocal.
A ação internacional
O Seikatsu Club, se inscreve desde mais de 20 anos na linha da transformação dos grandes desafios planetários. Desde 1983, relações estreitas foram estabelecidas com organizações semelhantes na Coréia e em Taiwan. A organização participou da Cúpula da terra de 1992 no Rio de Janeiro e da conferência da ONU sobre o desarmamento.
O desenvolvimento de intercâmbios e o desenvolvimento de ações solidárias com organizações que partilham visões semelhantes se tornaram uma prioridade para a organização.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Uma escola elitista e libertária para todos: Michel Onfray



Entrevista com o filósofo Michel Onfray

[texto retirado da e-revista Brasileira Escola Pública]

Demissionário do sistema de educação do Ministério da Educação Nacional Francês e colocando-se explicitamente dentro da tradição do século 19, o filósofo Michel Onfray fundou, em 2002, uma universidade popular em Caen, com o objetivo de democratizar a cultura, proporcionando gratuitamente o saber para o maior número possível de pessoas - um novo Jardim de Epicuro, mas fora das paredes, lançando as bases para uma autêntica "comunidade filosófica" contra o mercantilismo dos saberes. Outros antes dele haviam pensado em fazer isso, mas sem tomar uma atitude efetiva-principalmente os militantes da ONG Droits Devant! (Direitos em Frente!) quando estes ocupavam o prédio da rua du Dragon, em Paris, em 1994. Dentro da lógica de Michel Onfray, a universidade popular se inspira na universidade tradicional (qualidade das informações, progressão pessoal, transmissão de um conteúdo antes de todo debate).
Contudo, ela conserva do café filosófico à abertura para todos os públicos, a utilização crítica dos saberes e a prática do diálogo. A fórmula precisa respeitar determinados critérios: os docentes são benévolos; as aulas são gratuitas; os participantes totalmente livres. Participa quem quer, sem precisar se inscrever previamente, sem condições de idade ou de diploma, e sem precisar submeter-se a um controle dos conhecimentos. Os curso articulam-se entre uma exposição e uma discussão entre o professor e a plateia. Desde 2003, Michel Onfray oferece, a partir do mesmo modelo, uma universidade popular de verão no Lazaret de Ajaccio (na Córsega). Iguais a estas, outras surgiram, contando, em muitos casos, com o apoio das coletividades locais: perto de Arras (Pas-de-Calais, norte) e em Narbonne (Aude, sudoeste), sendo agora a vez de Lyon.
Nesta entrevista Michel Onfray defende o poder emancipador da pedagogia libertária. A miséria social e moral das nossas sociedades impõe a necessidade de ensinar a todos um saber alternativo e crítico, até porque muitos intelectuais deixaram de se preocupar em tornar popular o saber filosófico.
Le Monde de L'Éducation - Na sua obra La Communauté philosophique (Galilée, 2004) você escreve que "o pedagogo libertário trabalha para o seu apagamento pessoal, e cultiva o poder interrogativo de toda a subjectividade". Por que é que este poder se encontra esgotado no aparelho escolar, quando ainda existem certos professores que conseguem despertar e responder ao desejo de saber dos alunos?
Michel Onfray - A instituição escolar é esquizofrênica: ela tem um discurso, mas leva a cabo uma prática nos antípodas daquele discurso. O discurso é este: a escola forma a inteligência, constrói indivíduos cultivados cujo saber lhes permitiria desenvolver juízos esclarecidos, ensina a ler, a escrever, a fazer contas, a pensar, ela formaria o cidadão ao educá-lo para a liberdade. Mas, a verdade, é que na prática ela negligencia a inteligência para privilegiar o exercício da memória e da repetição calibrado em função de um programa feito para isso. A educação nacional ensina, sobretudo a submissão, a docilidade, a hipocrisia, o artificial. Só assim se pode explicar que num curso de 7 anos de inglês se consiga fazer tão poucos jovens bilíngues. O que é que se aprende durante aquelas intermináveis horas de aprendizagem de línguas senão a arte de bem funcionar dentro da máquina que permita a passagem para o ensino superior, e a produção de diplomas úteis para o mundo da integração social.
Le Monde de L'Éducation - Qual é a genealogia dessa pedagogia libertária que você defende? Estaria no prosseguimento de uma linha que vai de Epicuro a Freinet?
Michel Onfray- Se o termo libertário significar "o que educa a liberdade", ou "o que faz da liberdade o bem supremo", sem dúvida, que poderíamos começar com Sócrates e a sua maiêutica, a sua arte de desenvolver as potencialidades de cada qual e torná-las em realidades tangíveis, podemos depois continuar com Diógenes e os filósofos cínicos que usam um bastão para mandar embora os que procuram um mestre e a submissão. Prosseguimos com Erasmo, o grande e imenso Erasmo, e, certamente, Montaigne, que tanto lhe deve, para falar de várias matérias, como a Educação e tantas outras. Passamos depois para Nietzsche que ensina que um bom mestre é aquele que aprende aquilo que se desprende de si. Seria preciso ainda falar, com certeza, dos autores libertários, que a história conheceu, como Max Stirner e o seu "Falso Princípio da Nossa Educação", Sébastien Faure, que aplicou o seu método em La Ruche, mas ainda A.S. Neill e os seus "Jovens livres de Summerhill" que me fizeram desejar tornar-me professor antes de me desiludir na Escola Superior de Educação. Seria ainda preciso acrescentar o excelente livro "Advertência aos estudantes e liceais" de Raoul Vaneigem.
Le Monde de L'Éducation - Uma certa concepção da pedagogia libertária - nomeadamente a que defende a espontaneidade do aluno - não fará o jogo do "novo espírito do capitalismo" que pretende apoiar a participação dos "atores"? Não contribuirá ela para o idiota útil do "neoliberalismo"?
Michel Onfray- Tem razão.Eu sou um ardente defensor de Maio de 68 e do espírito de Maio, que se definia por uma revolução metafísica antiautoritária. Os dominados punham em causa os dominantes. Os pares tradicionais - mulheres/homens, jovens/velhos, empregados/patrões, esposas/maridos - deixaram de ter um estatuto divino. E tudo isso foi uma coisa boa. Mas à negação dos velhos valores não se seguiu uma positividade. Destruir é bom se, e somente se, propusermos a seguir uma reconstrução. Os valores libertários, por exemplo, mereceriam mais que os simples elogios da indolência, da espontaneidade, do natural, do porreirismo generalizado por via da desvalorização do rigor que se mostrou tão pouco democrático quanto demagógico. Porque esta renúncia à memória, ao esforço, ao trabalho, à cronologia, e todas essas categorias consideradas reacionárias fizeram efetivamente o jogo do poder, que prefere ter um rebanho de inculto embrutecidos que indivíduos apetrechados com o saber e a cultura. A pedagogia libertária não é a pedagogia liberal pós-anos 1960 que deixa o jovem livre na turma, e que dá plenos poderes à competição entre classes sociais, e que é, ela própria, geradora de reprodução social.
Le Monde de L'Éducation - "Passamos de um ensino autoritário a um ensino clientelar", escreve Raoul Vaneigem num texto recente sob o título Modeste Propositions aux Grévistes ( Verticales,2004). "O endoutrinamento suscitava, ao menos, a revolta, a propaganda estimulava o seu oposto, o desejo de pensar de outra forma. O feiticismo do dinheiro enfraqueceu o pensamento que ruge e incomoda." Concorda com esta análise?
Michel Onfray- Vaneigem é um amigo que me estimula - ele acaba por me ultrapassar pela esquerda! - mas não partilho o seu otimismo que está, de resto, na gênese do seu radicalismo político: no meu entender, a autoridade produz uma submissão massiva, pois o medo, o temor e o desejo de servidão voluntária são grandes. A revolta não é gerada pela ditadura - se assim fosse, seria preciso desejarmos a ditadura enquanto momento dialético das revoltas lógicas - mas por temperamentos rebeldes, revoltados, insubmissos gerados por razões existenciais que só uma psicanálise à maneira sartriana - descobrir o projeto original - permitiria compreender. Conheci períodos da minha vida - nomeadamente os sete anos de pensionato, quatro dos quais no orfanato dos salesianos - que fizeram de mim aquilo que sou hoje, mas que também fizeram uma multidão de indivíduos castrados da vida e orgulhosos de o ser. Uma mesma causa não produz felizmente os mesmos efeitos em todos nós. É preciso levar em consideração o prazer de estar submetido, tal como existe com tantas pessoas.
Le Monde de L'Éducation - É procurando retomar o que há de melhor nos cafés-filosóficos e nas Universidades (a liberdade dos primeiros e a seriedade da segunda), ao mesmo tempo em que rejeita o que há de pior em cada qual (o extravasamento de um lado e a secura do outro), que você decidiu fundar a Universidade Popular de Caen. Mas também com o objetivo de retomar e prosseguir o ideal nascido no tempo da questão Dreyfus. Em que medida é ela um meio de lutar contra a situação de crise por que a França atravessa: miséria social, racismo, bloqueios nacionais-populistas etc?
Michel Onfray- O saber é um poder. Posto isto, é preciso um saber específico suscetível de permitir a libertação e não a alienação. A filosofia não é de fato um instrumento de libertação: ensinar as ideias platônicas, falar da Cidade de Deus de S. Agostinho, das teses tomistas, da aposta de Pascal, do ocasionalismo de Malebranche, da angústia de Kierkegaard e de tantas outras matérias da história da filosofia ajudam mais a manter o poder instalado e permitir o domínio do cristianismo do que a emancipar o aprendiz em filosofia. Daí o interesse em ensinar quer um saber alternativo, quer um saber clássico, mas de maneira alternativa, isto é, crítica. A subversão cínica, o hedonismo cirenaico, a libertação epicurista, a alegria gnóstica, só para ficar na Antiguidade, são ilustrações de saberes alternativos; ou então, falar dos saberes clássicos, mas de maneira alternativa: mostrar que o conceito errôneo de pré-socrático, desvalorizando os predecessores socráticos, pressupõe uma escrita platônica da história da filosofia, explicar as razões da evicção do materialismo de Demócrito (cuja obra completa Platão queria queimar em auto-de-fé). Estes saberes permitem construir uma inteligência crítica, mas também realizar um trabalho sobre outras matérias, nomeadamente as que estão associadas a essa crise que referiu.
Le Monde de L'Éducation - Você costuma recordar que intelectuais como Alain, Péguy, Bergson e tantos outros, frequentaram e animaram cursos de educação popular, lançados pelo tipógrafo anarquista Georges Deherme. Os intelectuais dos anos 2000 esqueceram o seu papel de educadores e a ideia de tornar popular, a filosofia?
Michel Onfray- A nossa época midiática produziu dois tipos de intelectuais: o primeiro, especializou-se na miséria limpa, uma miséria longínqua que permita uma postura declamatória à maneira teatral, reproduzida logo de imediato pelos mídia. Tendente a ser midiatizada, e não precisando de nenhum outro compromisso que não seja o verbo, a carta postal ou a consulta de um livro, ela permite tocar o trompete dos grandes princípios maiúsculos: Humanidade, Liberdade, Direitos do Homem etc. O segundo, ocupa-se antes da miséria suja, a que envolve os explorados, os operários, os miseráveis e os excluídos do sistema, as vítimas e outros dejetos do liberalismo, a ideologia defendida pela maior parte dos primeiros. Os intelectuais dos anos 2000 não cuidam da educação popular nem de tornar popular a filosofia: o seu saber é utilizado para fins financeiros, traduzíveis em moedas reais ou simbólicas, mas nunca com o objetivo de uma crítica social.
Le Monde de L'Éducation - Um curso magistral pode ser libertário?
Michel Onfray- Sim, se o magistério do curso magistral for aquele que indiquei ainda há pouco: um mestre libertário que cuida antes de tudo em cartografar e de identificar o conjunto das situações que estão em jogo, fornecendo depois uma bússola e o seu modo de emprego, isto é, convidar cada qual a fazer a sua própria viagem.
Le Monde de L'Éducation - A Universidade popular histórica acabou por desaparecer antes da Primeira Guerra Mundial em razão de causas e desinteligências internas. A Universidade popular tem tido um grande sucesso. Como evitar os perigos?
Michel Onfray- A Universidade popular é um organismo vivo e, como tal, mortal. Os três anos da sua existência já permitem identificar alguns vírus, erros e ataques. Tudo normal. A Universidade popular tem tido efetivamente um grande sucesso público e popular, gerou uma verdadeira energia alternativa, propõe um intelectual coletivo - para usar a fórmula de Bourdieu - eficaz, que logo perturba e incomoda. É normal que a nossa aventura atraia invejas e revele os medíocres, os invejosos, e outras figuras de ressentimento que não existem e não vivem senão por e para a destruição. Mas nós somos uma comunidade de amigos, no sentido epicurista, que vamos experimentando o verdadeiro poder da amizade epicurista. E, depois, sejamos nietzscheanos, o que não mata fortalece-nos. Para o resto, só o Deus das universidades populares poderá dizer se a experiência desaparecerá - sim, porque ela sempre desaparecerá -, seja como vítima da síndrome do recém-nascido ou do catarro dos velhos, seja por suicídio próprio na flor da idade ou por um esgotamento centenário.
Le Monde de L'Éducation - Uma educação "elitista para todos". Esta fórmula do dramaturgo Antoine Vitez adaptada à educação mantém-se atual?
Michel Onfray- Mais atual do que nunca. Gosto mesmo do oxímoro, uma figura de estilo que, associando dois termos aparentemente contraditórios, gera um sentido novo: universidade popular é realmente um oxímoro espantoso! O elitismo para todos, também. Percebe-se que, para além da pura e simples justaposição verbal, para além do simples jogo de palavras, uma nova significação emerge à luz do dia. A expressão elitismo para todos supõe uma outra definição de cada um dos termos; trata-se de dar o melhor ao maior número, porque o melhor existe, sem dúvida, mas normalmente só é dado aos melhores, pelos menos, aqueles que assim são qualificados pela máquina social. Quando é destinado a todos, ao maior número - é essa a minha definição de popular, e também a de Michelet - o elitismo brilha com outra clareza, que muitos se têm esquecido, e que é a da luz do iluminismo.

Pedagogia Libertária - Roberto Freire


A Soma é um processo terapêutico-pedagógico. Estas duas dimensões de nosso trabalho estão em permanente articulação, onde a perspectiva terapêutica abre descobertas pedagógicas e vice-versa. Neste sentido, observar como se dá este processo, quais os fatores envolvidos e, sobretudo a ética e a política presentes nas práticas terapêuticas e pedagógicas são de fundamental importância para nós.
Defendemos a idéia de uma metodologia que se apóia na pedagogia libertária como paradigma de uma prática que busque combater os mecanismos de poder, normalmente presentes nas relações de saber. Assim, para nós, as reflexões libertárias presentes neste referencial de educação norteiam nosso trabalho.
Durante um período em torno de 10 anos, realizamos nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro o “Curso de Pedagogia Libertária da SOMA”. Ele representou um encontro onde buscávamos a construção de novos espaços de debate de idéias e de experiências de convivência. Reunindo pessoas com desejo de ampliar seus conhecimentos e suas ações, criamos coletivamente um processo de aprendizado onde tentávamos fugir da mesmice da pedagogia tradicional autoritária. Neste período, o Coletivo Anarquista Brancaleone organizou os temas do Curso a partir desta proposta de renovação constante e dos interesses despertados na realidade cotidiana. Convidamos pensadores e ativistas para discutirmos juntos o papel da psicologia na atualidade, a visão libertária do amor, as manifestações anti-globalização, a arte enquanto expressão da liberdade e outros importantes temas correlatos à prática da Soma como terapia anarquista.
Leia abaixo o texto do escritor e somaterapeuta Roberto Freire sobre Pedagogia Libertária. Este material foi extraído de seu livro que leva o mesmo nome, e que baseia-se e retrata a experiência do curso que redimencionou a prática da Soma.

Pedagogia Libertária
por Roberto Freire
Nas ditaduras, o poder é tomado pelas armas, pela fome e pela morte. O capitalismo se utiliza da democracia para chegar ao poder pela compra dos votos e pela corrupção da justiça. De qualquer modo, sempre autoritarismo e violência na gênese do poder.
Mas a manutenção do poder do Estado nas ditaduras ou nas democracias capitalistas é garantida não mais diretamente pelas armas e pelo dinheiro. Vem sendo garantida pela família e pela escola, por meio da pedagogia autoritária, apoiada e estimulada pelo Estado autoritário.
Wilhelm Reich dizia que “a familial burguesa capitalista espelha e reproduz o estado”. O mesmo se pode dizer das escolas onde também se pratica a pedagogia autoritária. Educadas dessa maneira, as crianças e os jovens tornam-se obedientes e submissos aos pais, aos professores e ao Estado.
Em verdade, tanto a pedagogia doméstica quanto a escolar, quando autoritárias, visam reprimir nas crianças e nos jovens o sentimento e a necessidade da liberdade como condição fundamental da existência. Sem esse sentimento e sem essa necessidade, desaparece nas pessoas o espírito crítico e o desejo de participação ativa na sociedade. São os dependentes. Desgraçadamente, são a maioria.
Na vida familiar, três são as armas principais da pedagogia autoritária: primeiro, o pátrio poder (os filhos devem obedecer aos pais, por lei, até a maioridade), o que é um abuso e uma violência tornados legais; segundo, o amor, sentimento natural de beleza e gratidão que os pais transformam em instrumento de dominação e de posse sobre os filhos, fazendo com que se submetam às suas vontades chantagísticas, usadas para não sentirem a dor do remorso e a do abandono; terceiro, pela dependência dos filhos ao dinheiro dos pais e pela ameaça, também chantagística, de afastá-los de casa sem nenhum recurso financeiro.
Crianças que foram educadas sob uma dessas três formas (ou sob todas) de autoritarismo entram na escola já deformadas e facilmente projetam nos professores o poder dos pais sobre si. Não conseguem criticá-los e, se o fazem, não transformam a crítica em ação, a não ser contra si mesmos, tornando-se indiferentes ao conhecimento e apresentando baixo rendimento escolar.
Homens e mulheres criados no ambiente familiar e escolar autoritários são os que garantem a manutenção das ditaduras e do capitalismo, bem como as falsas democracias. Eles “espelham e reproduzem o Estado” são pessoas neuróticas, fracas, despreparadas, incompetentes e impotentes para a vida pessoal plena e social satisfatória. Servem apenas para se submeter, obedecer, entrar em linha de montagem na produção, ser massificadas pela mídia e votar a favor dos poderosos, mostrando–se indiferentes, se conseguem um trabalho que os sustente, à miséria da maioria. Como conseguiu estudar ou trabalhar no sistema, pode suportar, indiferente, a convivência com os setenta milhões de conterrâneos que vivem na mais completa miséria.
Diante de um quadro desses, torna-se necessário, absolutamente indispensável, refletir sobre a possibilidade de interferência no sistema político burguês capitalista, especialmente sobre a sua pedagogia autoritária. É urgente descobrir alguma forma de atuação libertária em todos os níveis, desde as creches, passando pelas escolas primárias e secundárias, chegando, por fim, à universidade.
A luta contra a pedagogia autoritária praticada pela família burguesa capitalista é algo que estamos praticando há trinta anos, por meio da Soma. Hoje temos uma equipe de somaterapeutas trabalhando no Brasil e na Europa, combatendo a pedagogia autoritária das famílias e das escolas.
Em 1994, iniciamos na Casa da Soma, em São Paulo, um curso bimestral de pedagogia libertária. A ele comparecem as pessoas ligadas à Soma. O curso tem a duração de um fim de semana, e trabalham-se de oito a dez horas por dia, com a prática diária da capoeira Angola. Vou procurar sintetizar neste capítulo os temas debatidos e as experiências realizadas neste curso. Muitos dos conceitos expostos aqui nasceram dos debates, das contribuições e das pesquisas dos participantes do Curso de Pedagogia Libertária da Soma. Trata-se, pois, de um trabalho de produção autogestiva que depende igualmente da criatividade individual e da coletiva, bem como da interação dinâmica entre elas.
Para o nosso primeiro encontro, colecionei algumas frases, e criei outras para servirem de estímulo à discussão, buscando descobrir uma definição de pedagogia libertária em oposição à pedagogia autoritária praticada no Brasil.
Vou colocar as frases uma depois da outra, como fiz no curso, quando foram escritas em cartazes colados nas paredes da sala. O leitor deve ler as frases dando um tempo para fazer a reflexão antes de fazer a leitura da seguinte.
Se não for libertária, toda pedagogia é autoritária.
Não há educação libertária que não seja auto-educação.
Precisamos aprender com os outros apenas o que não nos foi possível aprender sozinho.
A necessidade de aprender é biológica, ela se faz sempre de dentro para fora.
O impulso pela busca do conhecimento é mais importante que a coisa conhecida.
Perguntar é o ato mais espontâneo e o único realmente indispensável na formação cultural. Não se é livre para perguntar em ambiente autoritário.
Ensinar o que não foi perguntado, além de inútil, é uma espécie de estupro cultural.
As teorias educativas consistem em tirar alguma coisa antes de dar, censurar antes de oferecer modelos válidos, proibir e impor normas antes de socializar a experiência.
Somos todos diferentes uns dos outros, inclusive pelo interesse em conhecer.
A criança aprende tudo sozinha. Basta não impedi-la. Só precisamos ensinar-lhe detalhes tecnológicos.
A auto-educação pode receber ajuda, sugestão que se torna educativa na medida em que ativa forças latente ou já em ação no indivíduo.
A pedagogia libertária se baseia no gosto espontâneo das crianças pelo conhecimento e em sua capacidade natural de criticar o que lhes ensinam. A pedagogia autoritária visa fundamentalmente destruir esse potencial crítico.
A necessidade de conhecimento é compulsiva, como a de liberdade e a de oxigênio.
Cada pessoa, após a leitura, estabelece seu próprio conceito de pedagogia libertária. Então passamos a trabalhar as dificuldades e os caminhos possíveis para sua realização na prática cotidiana. O professor José Maria Carvalho Ferreira, da Universidade Técnica de Lisboa – Portugal, participou de um dos cursos e nos deixou um texto com suas contribuições. Dele vamos extrair os pontos que nos pareceram mais importantes.
“A pedagogia pode ser entendida como um meio de aperfeiçoamento do comportamento humano, nos domínios físico e cognitivo, de forma a potencializar a sua capacidade de assimilação do conhecimento. Como um modelo educacional-instrumental, a pedagogia serve fundamentalmente para melhorar os processos de aprendizagem cultural e socializar o indivíduo e grupos que vivem nas instituições escolares.
Hoje, embora mantenha laços de indissolubilidade, com o ser humano e a sociedade, tende a funcionar como um mero instrumento de adaptação racional dos seres humanos aos desígnios das instituições escolares, do Estado e do mercado. Torna-se difícil circunscrever a função da pedagogia exclusivamente no indivíduo, prescindindo de relacioná-la com todo envolvimento cultural, político, social e econômico.
Contemporaneamente, persiste uma grande dificuldade em descortinar o sentido e a lógica de uma pedagogia que se ideologiza como espontânea, criativa e livre, quando na maioria dos casos ela não é mais do que um fenômeno de castração do ser humano a serviço da racionalidade instrumental do mercado e do Estado.
Comparando com a pedagogia libertária, pode-se dizer que de um lado temos a individualidade, a liberdade e a espontaneidade e a criatividade dos indivíduos e, do outro, a instrumentação e a racionalidade do mercado, do Estado, do poder e da autoridade a agir e a intervir sobre o comportamento do indivíduo de forma tutelar e hierarquizada.
Iniciando sua análise histórica sobre a pedagogia na Europa no período da Reforma e do Renascimento, Ferreira mostra o importante papel da Igreja Católica atuando de modo autoritário, no sentido em que a razão, a liberdade e a espontaneidade criativa das crianças são impedidas desde a infância.
Quando em meados do século 18 irrompe o processo de industrialização e de urbanização das sociedades, a pedagogia sofre grande transformação, passando a preparar os cidadãos para as novas funções e tarefas industriais, comerciais e agrícolas, assim como os transportes e as comunicações, qualificando mãos-de-obra específicas. O mundo da produção, consumo e distribuição de mercadorias exigia um tipo de conhecimento que não se adequava mais a um saber contemplativo da ordem divina.
O Estado passou, assim, a se responsabilizar por uma educação científica e que atendesse a seus interesses do mercado. E isso utilizando métodos e técnicas que potencializavam a percepção do conhecimento num sentido competitivo e hierárquico. A posição do aluno passa para uma função de passividade e subalternidade criativa.
Essa pedagogia potencializava relações hierárquicas de dominação do professor sobre os alunos no processo de aprendizagem de conhecimentos. Assim veio até hoje a pedagogia autoritária refletindo a organização e o funcionamento dos Estados capitalistas e formando cidadãos a ela adequados.
Nesses períodos históricos sempre apareceram na Europa experiências educacionais e pedagógicas libertárias. Seus valores principais são: solidariedade, liberdade, autogestão, espontaneidade e criatividade integrados num todo social harmônico. Elas nunca separaram a educação e a pedagogia do todo social em que se integram. O objetivo dessas teorias e experiências era a extinção das relações de dominação e de exploração que subsistem entre professores, alunos e funcionários que trabalham e vivem nas instituições escolares, de forma a permitir que a espontaneidade, a liberdade, a criatividade e a responsabilidade natural dos indivíduos pudessem emergir para configurações sociais integradas num modelo autogestionário de características libertárias.
Na Europa Ocidental, as experiências históricas e as teorias emergiram desde o final do século 18 até os nossos dias de pensadores anarquistas: William Godwin (1756-1836), Max Stirner (1800-1856), Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), Mikhail Bakunin (1814-1876), Paul Robin (1837-1912), Pyotr Kropotkin (1842-1921), Sebastien Faure (1859-1909).
Para Godwin, nenhum Estado ou outro tipo de autoridade moral (professor, Deus etc.) poderia pedagogicamente sobrepor-se aos desígnios soberanos do aluno como ser essencialmente livre e criador. Para conquistar essa liberdade e felicidade criadoras ,é preciso que o ser humano, desde criança, ganhe o hábito e crie o método de aprender por si mesmo, sem depender de qualquer tutela moral, política ou religiosa. Godwin era as escolas do Estado, porque isso lhes estimulava o poder sobre os alunos.
Para Stirner o que importava mais era a soberania absoluta do indivíduo em face de todos os poderes ou autoridades exteriores a si mesmo. Só o ser humano, enquanto entidade ontológica única poderia evoluir para uma soberania de indivíduos livres que constituiriam e desenvolveriam pedagogias e educações múltiplas, mas simultaneamente passíveis de se integrar numa mesma síntese societária anarquista.
Proudhon foi um dos autores anarquistas que mais preocupação tiveram em relação à pedagogia libertária, na medida em que considerava o trabalho como fonte criadora da ordem social econômica da sociedade futura. O seu projeto educacional e pedagógico está muito ligado ao mundo da produção. Para libertar o trabalho pedagógico da opressão e da exploração capitalista e estatal, numa sociedade libertária, a instrução e a educação dos trabalhadores assumiam uma importância capital. Para ele haveria três modalidades para praticar a educação e o ensino: pelos pais nas famílias e domicílios, pelas escolas privadas em obediências aos seus particularismos profissionais, ideológicos e geográficos e, ainda, as escolas públicas com maior abrangência social, baseadas em pressupostos federalistas. As relações entre professor e alunos inscreviam-se num quadro estrutural autogestionário, mutualista e federativo. Proudhon defendia a “escola-oficina”, que permitia um aprendizado politécnico.
Bakunin inscrevia a educação e a pedagogia como partes integrantes da revolução social. Mais do que privilegiar as relações entre professor-aluno havia que abolir o Estado e as relações capitalistas em níveis de toda sociedade e, logicamente, o tipo de autoridade hierárquica de dominação que emerge da instituição escolar.
Para Kropotkin era importante formar jovens de forma a torna-los responsáveis e ativos enquanto agentes de transformação radical da sociedade capitalista. A pedagogia e a educação libertárias deveriam desenvolver-se em sintonia com a assimilação de um conhecimento compatível com as necessidades de produção, de distribuição e de consumo de bens e serviços inerentes ao funcionamento de uma sociedade libertária.
No campo das experiências libertárias, a primeira foi realizada por Paul Robin no orfanato Cempuis, na França, entre 1880e 1894. Embora enquadrado institucionalmente no sistema público da França, fundamentou-se na revisão libertária de Robin como professor. Todos os princípios libertários foram postos em ação, mas tal liberdade, tal criatividade e tal autogestão incomodaram a Igreja e o Estado. E a escola do Cempuis foi fechada depois de ataques difamatórios.
Em 1904, Sebastien Faure criou uma escola denominada A Colméia. Militante anarquista radical, ele procurou dar à sua escola um caráter nitidamente libertário, sobretudo na autogestão. Criou também a cooperativa A Colméia, por meio da qual o ensino tratava das relações de produção, de consumo e de educação por mecanismos autogestionários e libertários. A coeducação e a relação de liberdade e de igualdade entre rapazes e moças eram também estimuladas. Financiada por Faure e pelo sindicalismo revolucionário francês, com o advento da Primeira Guerra Mundial A Colméia teve que fechar as portas em princípio de 1917.
Francisco Ferrer foi sem dúvida a figura mais proeminente no campo da luta por uma educação e uma pedagogia libertárias. Por sua perspectiva racionalista e laica, logo recebeu com a criação da sua Escola Moderna a oposição da igreja. A escola começou a funcionar em 1904, em Barcelona, depois seu projeto pedagógico ganhou vários outros pontos da Espanha, chegando até o Brasil. Numa sociedade como a da Espanha naquela época, modelada psicológica e fisicamente pelo poder de espírito despótico do ensino clerical da Igreja Católica, criar e dinamizar um projeto educacional e pedagógico libertário por todas as regiões da Espanha revelavam-se no mínimo um perigo e uma afronta a todos os poderes instituídos: Estado, burguesia e Igreja. A escola era financiada pelos pais dos alunos e pelos alunos adultos, dependendo da capacidade financeira de cada um.
Com o fuzilamento de Francisco Ferrer em 1909, em Barcelona, por ordem de Afonso XIII, a experiência libertária da Escola Moderna sofreu um duro golpe. Mas isso não impediria que a sua força simbólica no campo das experiências pedagógicas e educacionais libertárias deixasse saldos para sempre no imaginário coletivo anarquista, quer na Espanha, quer no resto do mundo.
Alguns impulsos importantes para o desenvolvimento da pedagogia libertária ocorreram também durante a Revolução Espanhola de 1936. Houve o projeto pedagógico apresentado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores (CNT) no Congresso de Saragoza, em maio de 1936.
Era o projeto da Escola Nova Unificada, que não conseguiu se realizar plenamente, embora na região da Catalunha, onde a CNT exercia certa influência, tenha sido implantado. A experiência da Escola Nova Unificada se encerrou junto com o epílogo da Revolução Espanhola em 1939.
De todas as escolas libertárias européias, vale a pena ainda citar a criada por Alexander Neil, iniciada em 1921, Summerhill (Inglaterra) e as Comunidades Escolares de Hamburgo, iniciadas em 1919 na Alemanha e, finalmente, o Coletivo Paidéia em Mérida (Espanha), mais recentemente”.

SER(ES) AFINS