quarta-feira, 26 de maio de 2010

Carta da Terra - Versão Integral

Preâmbulo

Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu futuro. À medida que o mundo torna-se cada vez mais interdependente e frágil, o futuro enfrenta, ao mesmo tempo, grandes perigos e grandes promessas. Para seguir adiante, devemos reconhecer que no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que, nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações.

Terra, Nosso Lar

A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.

A Situação Global

Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, redução dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos eqüitativamente e o fosso entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e é causa de grande sofrimento. O crescimento sem precedentes da população humana tem sobrecarregado os sistemas ecológico e social. As bases da segurança global estão ameaçadas. Essas tendências são perigosas, mas não inevitáveis.

Desafios Para o Futuro

A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida. São necessárias mudanças fundamentais dos nossos valores, instituições e modos de vida. Devemos entender que quando as necessidades básicas forem atingidas, o desenvolvimento humano é primariamente ser mais, não, ter mais. Temos o conhecimento e a tecnologia necessários para abastecer a todos e reduzir nossos impactos ao meio ambiente. O surgimento de uma sociedade civil global está criando novas oportunidades para construir um mundo democrático e humano. Nossos desafios, ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão interligados, e juntos podemos forjar soluções includentes.

Responsabilidade Universal

Para realizar estas aspirações devemos decidir viver com um sentido de responsabilidade universal, identificando-nos com toda a comunidade terrestre bem como com nossa comunidade local. Somos ao mesmo tempo cidadãos de nações diferentes e de um mundo no qual, a dimensão local e global estão ligadas. Cada um comparte responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem estar da família humana e do grande mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo presente da vida, e com humildade considerando o lugar que ocupa o ser humano na natureza.

Necessitamos com urgência de uma visão de valores básicos para proporcionar um fundamento ético à emergente comunidade mundial. Portanto, juntos na esperança, afirmamos os seguintes princípios, todos interdependentes, visando um modo de vida sustentável como critério comum, através dos quais a conduta de todos os indivíduos, organizações, empresas de negócios, governos, e instituições transnacionais será guiada e avaliada.
PRINCÍPIOS

I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DE VIDA

1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade.
a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente do uso humano.
b. Afirmar a fé na dignidade inerente de todos os seres humanos e no potencial intelectual, artístico, ético e espiritual da humanidade.

2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor.
a. Aceitar que com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger o direito das pessoas.
b. Afirmar que, o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder comporta responsabilidade na promoção do bem comum.

3. Construir sociedades democráticas que sejam justas, participativas, sustentáveis e pacíficas.
a. Assegurar que as comunidades em todos níveis garantam os direitos humanos e as liberdades fundamentais e dar a cada a oportunidade de realizar seu pleno potencial.
b. Promover a justiça econômica propiciando a todos a consecução de uma subsistência significativa e segura, que seja ecologicamente responsável.

4. Garantir a generosidade e a beleza da Terra para as atuais e as futuras gerações.
a. Reconhecer que a liberdade de ação de cada geração é condicionada pelas necessidades das gerações futuras.
b. Transmitir às futuras gerações valores, tradições e instituições que apóiem, a longo termo, a prosperidade das comunidades humanas e ecológicas da Terra.
Para poder cumprir estes quatro extensos compromissos, é necessário:

II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA

5. Proteger e restaurar a integridade dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida.
a. Adotar planos e regulações de desenvolvimento sustentável em todos os níveis que façam com que a conservação ambiental e a reabilitação sejam parte integral de todas as iniciativas de desenvolvimento.
b. Estabelecer e proteger as reservas com uma natureza viável e da biosfera, incluindo terras selvagens e áreas marinhas, para proteger os sistemas de sustento à vida da Terra, manter a biodiversidade e preservar nossa herança natural.
c. Promover a recuperação de espécies e ecossistemas em perigo.
d. Controlar e erradicar organismos não-nativos ou modificados geneticamente que causem dano às espécies nativas, ao meio ambiente, e prevenir a introdução desses organismos daninhos.
e. Manejar o uso de recursos renováveis como a água, solo, produtos florestais e a vida marinha com maneiras que não excedam as taxas de regeneração e que protejam a sanidade dos ecossistemas.
f. Manejar a extração e uso de recursos não renováveis como minerais e combustíveis fósseis de forma que diminua a exaustão e não cause sério dano ambiental.

6. Prevenir o dano ao ambiente como o melhor método de proteção ambiental e quando o conhecimento for limitado, tomar o caminho da prudência.
a. Orientar ações para evitar a possibilidade de sérios ou irreversíveis danos ambientais mesmo quando a informação científica seja incompleta ou não conclusiva.
b. Impor o ônus da prova àqueles que afirmam que a atividade proposta não causará dano significativo e fazer com que os grupos sejam responsabilizados pelo dano ambiental.
c. Garantir que a decisão a ser tomada se oriente pelas conseqüências humanas globais, cumulativas, de longo termo, indiretas e de longa distância.
d. Impedir a poluição de qualquer parte do meio ambiente e não permitir o aumento de substâncias radioativas, tóxicas ou outras substâncias perigosas.
e. Evitar que atividades militares causem dano ao meio ambiente.

7. Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário.
a. Reduzir, reutilizar e reciclar materiais usados nos sistemas de produção e consumo e garantir que os resíduos possam ser assimilados pelos sistemas ecológicos.
b. Atuar com restrição e eficiência no uso de energia e recorrer cada vez mais aos recursos energéticos renováveis como a energia solar e do vento.
c. Promover o desenvolvimento, a adoção e a transferência eqüitativa de tecnologias ambientais saudáveis.
d. Incluir totalmente os custos ambientais e sociais de bens e serviços no preço de venda e habilitar aos consumidores identificar produtos que satisfaçam as mais altas normas sociais e ambientais.
e. Garantir acesso universal ao cuidado da saúde que fomente a saúde reprodutiva e a reprodução responsável.
f. Adotar estilos de vida que acentuem a qualidade de vida e o suficiente material num mundo finito.


8. Avançar o estudo da sustentabilidade ecológica e promover a troca aberta e uma ampla aplicação do conhecimento adquirido.
a. Apoiar a cooperação científica e técnica internacional relacionada à sustentabilidade, com especial atenção às necessidades das nações em desenvolvimento.
b. Reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuem para a proteção ambiental e o bem-estar humano.
c. Garantir que informações de vital importância para a saúde humana e para a proteção ambiental, incluindo informação genética, estejam disponíveis ao domínio público.

III. JUSTIÇA SOCIAL E ECONÔMICA

9. Erradicar a pobreza como um imperativo ético, social, econômico e ambiental.
a. Garantir o direito à água potável, ao ar puro, à segurança alimentar, aos solos não contaminados, ao abrigo e saneamento seguro, distribuindo os recursos nacionais e internacionais requeridos.
b. Prover cada ser humano de educação e recursos para assegurar uma subsistência sustentável, e dar seguro social [médico] e segurança coletiva a todos aqueles que não são capazes de manter-se a si mesmos.
c. Reconhecer ao ignorado, proteger o vulnerável, servir àqueles que sofrem, e permitir-lhes desenvolver suas capacidades e alcançar suas aspirações.

10. Garantir que as atividades econômicas e instituições em todos os níveis promovam o desenvolvimento humano de forma eqüitativa e sustentável.
a. Promover a distribuição eqüitativa da riqueza dentro e entre nações.
b. Incrementar os recursos intelectuais, financeiros, técnicos e sociais das nações em desenvolvimento e aliviar as dívidas internacionais onerosas.
c. Garantir que todas as transações comerciais apóiem o uso de recursos sustentáveis, a proteção ambiental e normas laborais progressistas.
d. Exigir que corporações multinacionais e organizações financeiras internacionais atuem com transparência em benefício do bem comum e responsabilizá-las pelas conseqüências de suas atividades.

11. Afirmar a igualdade e a eqüidade de gênero como pré-requisitos para o desenvolvimento sustentável e assegurar o acesso universal à educação, ao cuidado da saúde e às oportunidades econômicas.
a. Assegurar os direitos humanos das mulheres e das meninas e acabar com toda violência contra elas.
b. Promover a participação ativa das mulheres em todos os aspectos da vida econômica, política, civil, social e cultural como parceiros plenos e paritários, tomadores de decisão, líderes e beneficiários.
c. Fortalecer as famílias e garantir a segurança e a criação amorosa de todos os membros da família.

12. Defender, sem discriminação, os direitos de todas as pessoas a um ambiente natural e social, capaz de assegurar a dignidade humana, a saúde corporal e o bem-estar espiritual, dando especial atenção aos direitos dos povos indígenas e minorias.
a. Eliminar a discriminação em todas suas formas, como as baseadas na raça, cor, gênero, orientação sexual, religião, idioma e origem nacional, étnica ou social.
b. Afirmar o direito dos povos indígenas à sua espiritualidade, conhecimentos, terras e recursos, assim como às suas práticas relacionadas a formas sustentáveis de vida.
c. Honrar e apoiar os jovens das nossas comunidades, habilitando-os para cumprir seu papel essencial na criação de sociedades sustentáveis.
d. Proteger e restaurar lugares notáveis, de significado cultural e espiritual.

IV. DEMOCRACIA, NÃO VIOLÊNCIA E PAZ

13. Fortalecer as instituições democráticas em todos os níveis e proporcionar-lhes transparência e prestação de contas no exercício do governo, a participação inclusiva na tomada de decisões e no acesso à justiça.
a. Defender o direito a todas as pessoas de receber informação clara e oportuna sobre assuntos ambientais e todos os planos de desenvolvimento e atividades que poderiam afetá-las ou nos quais tivessem interesse.
b. Apoiar sociedades locais, regionais e globais e promover a participação significativa de todos os indivíduos e organizações na toma de decisões.
c. Proteger os direitos à liberdade de opinião, de expressão, de assembléia pacífica, de associação e de oposição [ou discordância].
d. Instituir o acesso efetivo e eficiente a procedimentos administrativos e judiciais independentes, incluindo mediação e retificação dos danos ambientais e da ameaça de tais danos.
e. Eliminar a corrupção em todas as instituições públicas e privadas.
f. Fortalecer as comunidades locais, habilitando-as a cuidar dos seus próprios ambientes e designar responsabilidades ambientais a nível governamental onde possam ser cumpridas mais efetivamente.

14. Integrar na educação formal e aprendizagem ao longo da vida, os conhecimentos, valores e habilidades necessárias para um modo de vida sustentável.
a. Oferecer a todos, especialmente a crianças e a jovens, oportunidades educativas que possibilite contribuir ativamente para o desenvolvimento sustentável.
b. Promover a contribuição das artes e humanidades assim como das ciências na educação sustentável.
c. Intensificar o papel dos meios de comunicação de massas no sentido de aumentar a conscientização dos desafios ecológicos e sociais.
d. Reconhecer a importância da educação moral e espiritual para uma subsistência sustentável.

15. Tratar todos os seres vivos com respeito e consideração.
a. Impedir crueldades aos animais mantidos em sociedades humanas e diminuir seus sofrimentos.
b. Proteger animais selvagens de métodos de caça, armadilhas e pesca que causem sofrimento externo, prolongado o evitável.

16. Promover uma cultura de tolerância, não violência e paz.
a. Estimular e apoiar o entendimento mútuo, a solidariedade e a cooperação entre todas as pessoas, dentro das e entre as nações.
b. Implementar estratégias amplas para prevenir conflitos violentos e usar a colaboração na resolução de problemas para manejar e resolver conflitos ambientais e outras disputas.
c. Desmilitarizar os sistemas de segurança nacional até chegar ao nível de uma postura não-provocativa da defesa e converter os recursos militares em propósitos pacíficos, incluindo restauração ecológica.

d. Eliminar armas nucleares, biológicas e tóxicas e outras armas de destruição em massa.
e. Assegurar que o uso do espaço orbital e cósmico mantenha a proteção ambiental e a paz.
f. Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com a totalidade maior da qual somos parte.

O CAMINHO ADIANTE

Como nunca antes na história, o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Tal renovação é a promessa dos princípios da Carta da Terra. Para cumprir esta promessa, temos que nos comprometer a adotar e promover os valores e objetivos da Carta.

Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal. Devemos desenvolver e aplicar com imaginação a visão de um modo de vida sustentável aos níveis local, nacional, regional e global. Nossa diversidade cultural é uma herança preciosa, e diferentes culturas encontrarão suas próprias e distintas formas de realizar esta visão. Devemos aprofundar e expandir o diálogo global gerado pela Carta da Terra, porque temos muito que aprender a partir da busca iminente e conjunta por verdade e sabedoria.

A vida muitas vezes envolve tensões entre valores importantes. Isto pode significar escolhas difíceis. Porém, necessitamos encontrar caminhos para harmonizar a diversidade com a unidade, o exercício da liberdade com o bem comum, objetivos de curto prazo com metas de longo prazo. Todo indivíduo, família, organização e comunidade têm um papel vital a desempenhar. As artes, as ciências, as religiões, as instituições educativas, os meios de comunicação, as empresas, as organizações não-governamentais e os governos são todos chamados a oferecer uma liderança criativa. A parceria entre governo, sociedade civil e empresas é essencial para uma governabilidade efetiva.

Para construir uma comunidade global sustentável, as nações do mundo devem renovar seu compromisso com as Nações Unidas, cumprir com suas obrigações respeitando os acordos internacionais existentes e apoiar a implementação dos princípios da Carta da Terra com um instrumento internacional legalmente unificador quanto ao ambiente e ao desenvolvimento.

Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, a intensificação da luta pela justiça e pela paz, e a alegre celebração da vida.

Carta da Ecopedagogia - Org: Instituto Paulo Freire

Em defesa de uma pedagogia da Terra
1. Nossa Mãe Terra é um organismo vivo e em evolução. O que for feito a ela repercutirá em todos os seus filhos. Ela requer de nós uma consciência e uma cidadania planetárias, isto é, o reconhecimento de que somos parte da Terra e de que podemos perecer com a sua destruição ou podemos viver com ela em harmonia, participando do seu devir.
2. A mudança do paradigma economicista é condição necessária para estabelecer um desenvolvimento com justiça e eqüidade. Para ser sustentável, o desenvolvimento precisa ser economicamente factível, ecologicamente apropriado, socialmente justo, includente, culturalmente eqüitativo, respeitoso e sem discriminação. O bem-estar não pode ser só social; deve ser também sócio-cósmico.
3. A sustentabilidade econômica e a preservação do meio ambiente dependem também de uma consciência ecológica e esta da educação. A sustentatibilidade deve ser um princípio interdisciplinar reorientador da educação, do planejamento escolar, dos sistemas de ensino e dos projetos político-pedagógicos da escola. Os objetivos e conteúdos curriculares devem ser significativos para o(a) educando(a) e também para a saúde do planeta.
4. A ecopedagogia, fundada na consciência de que pertencemos a uma única comunidade da vida, desenvolve a solidariedade e a cidadania planetárias. A cidadania planetária supõe o reconhecimento e a prática da planetaridade, isto é, tratar o planeta como um ser vivo e inteligente. A planetaridade deve levar-nos a sentir e viver nossa cotidianidade em conexão com o universo e em relação harmônica consigo, com os outros seres do planeta e com a natureza, considerando seus elementos e dinâmica. Trata-se de uma opção de vida por uma relação saudável e equilibrada com o contexto, consigo mesmo, com os outros, com o ambiente mais próximo e com os demais ambientes.
5. A partir da problemática ambiental vivida cotidianamente pelas pessoas nos grupos e espaços de convivência e na busca humana da felicidade, processa-se a consciência ecológica e opera-se a mudança de mentalidade. A vida cotidiana é o lugar do sentido da pedagogia pois a condição humana passa inexoravelmente por ela. A ecopedagogia implica numa mudança radical de mentalidade em relação à qualidade de vida e ao meio ambiente, que está diretamente ligada ao tipo de convivência que mantemos com nós mesmos, com os outros e com a natureza.
6. A ecopedagogia não se dirige apenas aos educadores, mas a todos os cidadãos do planeta. Ela está ligada ao projeto utópico de mudança nas relações humanas, sociais e ambientais, promovendo a educação sustentável (ecoeducação) e ambiental com base no pensamento crítico e inovador, em seus modos formal, não formal e informal, tendo como propósito a formação de cidadãos com consciência local e planetária que valorizem a autodeterminação dos povos e a soberania das nações.
7. As exigências da sociedade planetária devem ser trabalhadas pedagogicamente a partir da vida cotidiana, da subjetividade, isto é, a partir das necessidades e interesses das pessoas. Educar para a cidadania planetária supõe o desenvolvimento de novas capacidades, tais como: sentir, intuir, vibrar emocionalmente; imaginar, inventar, criar e recriar; relacionar e inter-conectar-se, auto-organizar-se; informar-se, comunicar-se, expressar-se; localizar, processar e utilizar a imensa informação da aldeia global; buscar causas e prever conseqüências; criticar, avaliar, sistematizar e tomar decisões. Essas capacidades devem levar as pessoas a pensar e agir processualmente, em totalidade e transdisciplinarmente.
8. A ecopedagogia tem por finalidade reeducar o olhar das pessoas, isto é, desenvolver a atitude de observar e evitar a presença de agressões ao meio ambiente e aos viventes e o desperdício, a poluição sonora, visual, a poluição da água e do ar etc. para intervir no mundo no sentido de reeducar o habitante do planeta e reverter a cultura do descartável. Experiências cotidianas aparentemente insignificantes, como uma corrente de ar, um sopro de respiração, a água da manhã na face, fundamentam as relações consigo mesmo e com o mundo. A tomada de consciência dessa realidade é profundamente formadora. O meio ambiente forma tanto quanto ele é formado ou deformado. Precisamos de uma ecoformação para recuperarmos a consciência dessas experiências cotidianas. Na ânsia de dominar o mundo, elas correm o risco de desaparecer do nosso campo de consciência, se a relação que nos liga a ele for apenas uma relação de uso.

9. Uma educação para a cidadania planetária tem por finalidade a construção de uma cultura da sustentabilidade, isto é, uma biocultura, uma cultura da vida, da convivência harmônica entre os seres humanos e entre estes e a natureza. A cultura da sustentabilidade deve nos levar a saber selecionar o que é realmente sustentável em nossas vidas, em contato com a vida dos outros. Só assim seremos cúmplices nos processos de promoção da vida e caminharemos com sentido. Caminhar com sentido significa dar sentido ao que fazemos, compartilhar sentidos, impregnar de sentido as práticas da vida cotidiana e compreender o sem sentido de muitas outras práticas que aberta ou solapadamente tratam de impor-se e sobrepor-se a nossas vidas cotidianamente.
10. A ecopedagogia propõe uma nova forma de governabilidade diante da ingovernabilidade do gigantismo dos sistemas de ensino, propondo a descentralização e uma racionalidade baseadas na ação comunicativa, na gestão democrática, na autonomia, na participação, na ética e na diversidade cultural. Entendida dessa forma, a ecopedagogia se apresenta como uma nova pedagogia dos direitos que associa direitos humanos - econômicos, culturais, políticos e ambientais - e direitos planetários, impulsionando o resgate da cultura e da sabedoria popular. Ela desenvolve a capacidade de deslumbramento e de reverência diante da complexidade do mundo e a vinculação amorosa com a Terra.
Organização: Instituto Paulo Freire - Apoio: Conselho da Terra e UNESCO-Brasil

A Ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da Carta da Terra - Moacir Gadotti

A

RESUMO: O conceito de Ecopedagogia está relacionado com a sustentabilidade, para além da economia e da ecologia. A ecopedagogia inclui abordagens da planetaridade, educação para o futuro, cidadania planetária, virtualidade e a Pedagogia da Terra. A meta deste enfoque é discutir os paradigmas da Terra como uma comunidade global. Os princípios da Ecopeda-gogia são mais amplos do que a educação ambiental, desde que seu debate inclui processos de "co-educação", no marco da cultura de sustentabilidade, dentro e fora das escolas. A sustentabilidade educativa está além das nossas relações com o ambiente – ela se insere desde o quotidiano da vida, o profundo valor da nossa existência e nossos projetos de vida no Planeta Terra. Neste sentido, a Ecopedagogia, ou Pedagogia da Terra, é algo mais apropriado para a construção coletiva da Carta da Terra.
Palavras chaves: ecopedagogia, educação sustentável, pedagogia da Terra

ABSTRACT: The concept of "Ecopedagogy" is related to life sustainability, forward economy or ecology. The Ecopedagogy includes approaches of "planetaridade", education for the future, sustainability, planetary citizenship, virtuality or even Earth Pedagogy. The main aim of this study is to bring up Earth paradigm as a global community. The ecopedagogy concept is much larger than environmental education, since the central issue aims to debate the process of "co-education", within the culture of sustainability, inside and outside school’s projects. The sustainability education is much more than relationship with environment – it aims to debate, from quotidian life, the deep sense of our existence, our life project in the Planet Earth. In this scene, the Ecopedagogy, or Earth Pedagogy, is much more adequate to the collective process for building Earth Charter.
Key words: Ecopedagogy, education for sustainability, Earth pedagogy

Introdução
Três décadas de debates sobre "nosso futuro comum" deixaram algumas pegadas ecológicas, tanto no campo da economia, quanto no campo da ética, da política e da educação, que podem nos indicar um caminho diante dos desafios do Século XXI. A sustentabilidade tornou-se um tema gerador preponderante neste início de milênio para pensar não só o planeta, um tema portador de um projeto social global e capaz de reeducar nosso olhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a esperança num futuro possível, com dignidade, para todos.
O cenário não é otimista: podemos destruir toda a vida no planeta neste milênio que se inicia. Uma ação conjunta global é necessária, um movimento como grande obra civilizatória de todos é indispensável para realizarmos essa outra globalização, essa planetarização, fundamentada em outros princípios éticos que não os baseados na exploração econômica, na dominação política e na exclusão social. O modo pelo qual vamos produzir nossa existência neste pequeno planeta, decidirá sobre a sua vida ou a sua morte, e a de todos os seus filhos e filhas. A Terra deixou de ser um fenômeno puramente geográfico para se tornar um fenômeno histórico.
Os paradigmas clássicos, fundados numa visão industrialista predatória, antropocêntrica e desenvolvimentista, estão se esgotando, não dando conta de explicar o momento presente e de responder às necessidades futuras. Necessitamos de um outro paradigma, fundado numa visão sustentável do planeta Terra. O globalismo é essencialmente insustentável. Ele atende primeiro às necessidades do capital e depois às necessidades humanas. E muitas das necessidades humanas a que ele atende, tornaram-se "humanas" apenas porque foram produzidas como tais para servirem ao capital.

1- Pedagogia da Terra e educação sustentável
A sensação de pertencimento à Terra não se inicia na idade adulta e nem por um ato de razão. Desde a infância, sentimo-nos ligados com algo que é muito maior do que nós. Desde criança nos sentimos profundamente ligados ao universo e nos colocamos diante dele num misto de espanto e de respeito. E, durante toda vida, buscamos respostas ao que somos, de onde viemos, para onde vamos, enfim, qual o sentido da nossa existência. É uma busca incessante e que jamais termina. A educação pode ter um papel nesse processo se colocar questões filosóficas fundamentais, mas também se souber trabalhar ao lado do conhecimento essa nossa capacidade de nos encantar com o universo.
Hoje, tomamos consciência de que o sentido das nossas vidas não está separado do sentido do próprio planeta. Diante da degradação das nossas vidas no planeta chegamos a uma verdadeira encruzilhada entre um caminho Tecnozóico, que coloca toda a fé na capacidade da tecnologia de nos tirar da crise sem mudar nosso estilo poluidor e consumista de vida e um caminho Ecozóico, fundado numa nova relação saudável com o planeta, reconhecendo que somos parte do mundo natural, vivendo em harmonia com o universo, caracterizado pelas atuais preocupações ecológicas. Temos que fazer escolhas. Elas definirão o futuro que teremos. Não me parece realmente que sejam caminhos totalmente opostos. Tecnologia e humanismo não se contrapõem. Mas, é claro, houve excessos no nosso estilo poluidor e consumista de vida e que não é fruto da técnica, mas do modelo econômico. Este é que tem que ser posto e causa. E esse é um dos papéis da educação sustentável ou ecológica.
O desenvolvimento sustentável, visto de forma crítica, tem um componente educativo formidável: a preservação do meio ambiente depende de uma consciência ecológica e a formação da consciência depende da educação. É aqui que entra em cena a Pedagogia da Terra, a ecopedagogia. Ela é uma pedagogia para a promoção da aprendizagem do "sentido das coisas a partir da vida cotidiana", como dizem Francisco Gutiérrez e Cruz Prado em seu livro Ecopedagogia e cidadania planetária (São Paulo, IPF/Cortez, 1998). Encontramos o sentido ao caminhar, vivenciando o contexto e o processo de abrir novos caminhos; não apenas observando o caminho. É, por isso, uma pedagogia democrática e solidária. A pesquisa de Francisco Gutiérrez e Cruz Prado sobre a ecopedagogia originou-se na preocupação com o sentido da vida cotidiana. A formação está ligada ao espaço/tempo no qual se realizam concretamente as relações entre o ser humano e o meio ambiente. Elas se dão sobretudo no nível da sensibilidade, muito mais do que no nível da consciência. Elas se dão, portanto, muito mais no nível da sub-consciência: não as percebemos e, muitas vezes, não sabemos como elas acontecem. É preciso uma ecoformação para torná-las conscientes. E a ecoformação necessita de uma ecopedagogia. Como destaca Gaston Pineau em seu livro De l’air: essai sur l‘écoformation (Paris, Païdeia, 1992) uma série de referenciais se associam para isso: a inspiração bachelardiana, os estudos do imaginário, a abordagem da transversalidade, da transdisciplinaridade e da interculturalidade, o construtivismo e a pedagogia da alternância.
Precisamos de uma ecopedagogia e uma ecoformação hoje, precisamos de uma Pedagogia da Terra, justamente porque sem essa pedagogia para a re-educação do homem/mulher, principalmente do homem ocidental, prisioneiro de uma cultura cristã predatória, não poderemos mais falar da Terra como um lar, como uma toca, para o "bicho-homem", como fala Paulo Freire. Sem uma educação sustentável, a Terra continuará apenas sendo considerada como espaço de nosso sustento e de domínio técnico-tecnológico, objeto de nossas pesquisas, ensaios, e, algumas vezes, de nossa contemplação. Mas não será o espaço de vida, o espaço do aconchego, de "cuidado" (Leonardo Boff, Saber cuidar, Petrópolis, Vozes, 1999).
Não aprendemos a amar a Terra lendo livros sobre isso, nem livros de ecologia integral. A experiência própria é o que conta. Plantar e seguir o crescimento de uma árvore ou de uma plantinha, caminhando pelas ruas da cidade ou aventurando-se numa floresta, sentindo o cantar dos pássaros nas manhãs ensolaradas ou não, observando como o vento move as plantas, sentindo a areia quente de nossas praias, olhando para as estrelas numa noite escura. Há muitas formas de encantamento e de emoção frente às maravilhas que a natureza nos reserva. É claro existe a poluição, a degradação ambiental para nos lembrar de que podemos destruir essa maravilha e para formar nossa consciência ecológica e nos mover à ação. Acariciar uma planta, contemplar com ternura um pôr de sol, cheirar o perfume de uma folha de pitanga, de goiaba, de laranjeira ou de um cipreste, de um eucalipto... são múltiplas formas de viver em relação permanente com esse planeta generoso e compartilhar a vida com todos os que o habitam ou o compõem. A vida tem sentido, mas ele só existe em relação. Como diz o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade: "Sou um homem dissolvido na natureza. Estou florescendo em todos os ipês".
Isso Drummond só poderia dizer aqui na Terra. Se estivesse em outro planeta do sistema solar ele não diria o mesmo. Só a Terra é amigável com o ser humano. Os outros planetas são francamente hostis a ele, embora tenham sido originados na mesma poeira cósmica. Existirão outros planetas fora do sistema solar que abrigam a vida, talvez a vida inteligente? Se levarmos em conta que a matéria da qual se originou o universo é a mesma, é muito provável. Mas, por ora, só temos um que é francamente nosso amigo. Temos que aprender a amá-lo.
Como se traduz na educação o princípio da sustentabilidade? Ele se traduz por perguntas como: até que ponto há sentido no que fazemos? Até que ponto nossas ações contribuem para a qualidade de vida dos povos e para a sua felicidade? A sustentatibilidade é um princípio reorientador da educação e principalmente dos currículos, objetivos e métodos.
É no contexto da evolução da própria ecologia que surge e ainda engatinha, o que chamamos de "ecopedagogia", inicialmente chamada de "pedagogia do desenvolvimento sustentável" e que hoje ultrapassou esse sentido. A ecopedagogia está se desenvolvimento seja como um movimento pedagógico seja como abordagem curricular.
Como a ecologia, a ecopedagogia também pode ser entendida como um movimento social e político. Como todo movimento novo, em processo, em evolução, ele é complexo e, pode tomar diferentes direções, até contraditórias. Ele pode ser entendido diferentemente como o são as expressões "desenvolvimento sustentável" e "meio ambiente". Existe uma visão capitalista do desenvolvimento sustentável e do meio ambiente que, por ser anti-ecológica, deve ser considerada como uma "armadilha", como vem sustentando Leonardo Boff.
A ecopedagogia também implica uma reorientação dos currículos para que incorporem certos princípios defendidos por ela. Estes princípios deveriam, por exemplo, orientar a concepção dos conteúdos e a elaboração dos livros didáticos. Jean Piaget nos ensinou que os currículos devem contemplar o que é significativo para o aluno. Sabemos que isso é correto, mas incompleto. Os conteúdos curriculares têm que ser significativos para o aluno, e só serão significativos para ele, se esses conteúdos forem significativos também para a saúde do planeta, para o contexto mais amplo.
Colocada neste sentido, a ecopedagogia não é uma pedagogia a mais, ao lado de outras pedagogias. Ela só tem sentido como projeto alternativo global onde a preocupação não está apenas na preservação da natureza (Ecologia Natural) ou no impacto das sociedades humanas sobre os ambientes naturais (Ecologia Social), mas num novo modelo de civilização sustentável do ponto de vista ecológico (Ecologia Integral) que implica uma mudança nas estruturas econômicas, sociais e culturais. Ela está ligada, portando, a um projeto utópico: mudar as relações humanas, sociais e ambientais que temos hoje. Aqui está o sentido profundo da ecopedagogia, ou de uma Pedagogia da Terra, como a chamamos.
A ecopedagogia não se opõe à educação ambiental. Ao contrário, para a ecopedagogia a educação ambiental é um pressuposto. A ecopedagogia incorpora-a e oferece estratégias, propostas e meios para a sua realização concreta. Foi justamente durante a realização do Fórum Global 92, no qual se discutiu muito a educação ambiental, que se percebeu a importância de uma pedagogia do desenvolvimento sustentável ou de uma ecopedagogia. Hoje, porém, a ecopedagogia tornou-se um movimento e uma perspectiva da educação maior do que uma pedagogia do desenvolvimento sustentável. Ela está mais para a educação sustentável, para uma ecoeducação, que é mais ampla do que a educação ambiental. A educação sustentável não se preocupa apenas com uma relação saudável com o meio ambiente, mas com o sentido mais profundo do que fazemos com a nossa existência, a partir da vida cotidiana.

2 – Consciência planetária, cidadania planetária, civilização planetária
A globalização, impulsionada sobretudo pela tecnologia, parece determinar cada vez mais nossas vidas. As decisões sobre o que nos acontece no dia-a-dia parecem nos escapar, por serem tomadas muito distante de nós, comprometendo nosso papel do sujeitos da história. Mas não é bem assim. Como fenômeno e como processo, a globalização tornou-se irreversível, mas não esse tipo de globalização – o globalismo – ao qual estamos submetidos hoje: a globalização capitalista. Seus efeitos mais imediatos são o desemprego, o aprofundamento das diferenças entre os poucos que têm muito e os muitos que têm pouco, a perda de poder e autonomia de muita Estados e Nações. Há pois que distinguir os países que hoje comandam a globalização – os globalizadores (países ricos) – dos países que sofrem a globalização, os países globalizados (pobres).
Dentro deste complexo fenômeno podemos distinguir também a globalização econômica, realizada pelas transnacionais, da globalização da cidadania. Ambas se utilizam da mesma base tecnológica, mas com lógicas opostas. A primeira, submetendo Estados e Nações, é comandada pelo interesse capitalista; a segunda globalização é a realizada através da organização da Sociedade Civil. A Sociedade Civil globalizada é a resposta que a Sociedade Civil como um todo e as ONGs estão dando hoje à globalização capitalista. Neste sentido, o Fórum Global 92 se constituiu num evento dos mais significativos do final de século XX: deu grande impulso à globalização da cidadania. Hoje, o debate em torno da Carta da Terra está se constituindo num fator importante de construção desta cidadania planetária. Qualquer pedagogia, pensada fora da globalização e do movimento ecológico, tem hoje sérios problemas de contextualização.
"Estrangeiro eu não vou ser. Cidadão do mundo eu sou", diz uma das letras de música cantada pelo cantor brasileiro Milton Nascimento. Se as crianças de nossas escolas entendessem em profundidade o significado das palavras desta canção, estariam iniciando uma verdadeira revolução pedagógica e curricular. Como posso sentir-me estrangeiro em qualquer território se pertenço a um único território, a Terra? Não há lugar estrangeiro para terráqueos, na Terra. Se sou cidadão do mundo, não podem existir para mim fronteiras. As diferenças culturais, geográficas, raciais e outras enfraquecem, diante do meu sentimento de pertencimento à Humanidade.
A noção de cidadania planetária (mundial) sustenta-se na visão unificadora do planeta e de uma sociedade mundial. Ela se manifesta em diferentes expressões: "nossa humanidade comum", "unidade na diversidade", "nosso futuro comum", "nossa pátria comum", "cidadania planetária". Cidadania Planetária é uma expressão adotada para expressar um conjunto de princípios, valores, atitudes e comportamentos que demonstra uma nova percepção da Terra como uma única comunidade. Freqüentemente associada ao "desenvolvimento sustentável", ela é muito mais ampla do que essa relação com a economia. Trata-se de um ponto de referência ético indissociável da civilização planetária e da ecologia. A Terra é "Gaia", um super-organismo vivo e em evolução, o que for feito a ela repercutirá em todos os seus filhos.
Cultura da sustentabilidade supõe uma pedagogia da sutentabilidade que dê conta da grande tarefa de formar para a cidadania planetária. Esse é um processo já em marcha. A educação para a cidadania planetária está começando através de numerosas experiências que, embora muitas delas sejam locais, elas nos apontam para uma educação para nos sentir membros para além da Terra, para viver uma cidadania cósmica. Os desafios são enormes tanto para os educadores quanto para os responsáveis pelos sistemas educacionais. Mas já existem certos sinais, na própria sociedade, que apontam para uma crescente busca não só por temas espiritualistas e de auto-ajuda, mas por um conhecimento científico mais profundo do universo.
Educar para a cidadania planetária implica muito mais do que uma filosofia educacional, do que o enunciado de seus princípios. A educação para a cidadania planetária implica uma revisão dos nossos currículos, uma reorientação de nossa visão de mundo da educação como espaço de inserção do indivíduo não numa comunidade local, mas numa comunidade que é local e global ao mesmo tempo. Educar, então, não seria como dizia Émile Durheim, a transmissão da cultura "de uma geração para outra", mas a grande viagem de cada indivíduo no seu universo interior e no universo que o cerca.
O tipo de globalização de hoje está muito mais ligada ao fenômeno da mundialização do mercado, que é um tipo de mundialização. E mesmo esta mundialização, fundada no mercado, pode ser vista como uma globalização cooperativa ou como uma globalização competitiva sem solidariedade. Entre o estatismo absolutista e a mão invisível do mercado, pode existir (e existe) uma nova economia de mercado (há mercados e mercados!) onde predomina a cooperação e a solidariedade e não a competitividade selvagem, uma economia solidária, a verdadeira economia da sustentabilidade. Por tudo isso, precisamos construir uma "outra globalização" (Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. São Paulo, Record, 2000), uma globalização fundada no princípio da solidariedade.
A globalização em si não é problemática, pois representa um processo de avanço sem precedentes na história da humanidade. O que é problemático é a globalização competitiva onde os interesses do mercado se sobrepõem aos interesses humanos, onde os interesses dos povos se subordinam aos interesses corporativos das grandes empresas transnacionais. Assim, podemos distinguir uma globalização competitiva de uma possível globalização cooperativa e solidária que, em outros momentos, chamamos de processo de "planetarização". A primeira está subordinada apenas às leis do mercado e a segunda subordina-se aos valores éticos e à espiritualidade humana. Para essa segunda globalização é que a Carta da Terra, como um código de ética universal, deveria dar uma contribuição importante, não apenas através da proclamação que os Estados podem fazer, mas, sobretudo, pelo impacto que seus princípios poderão ter na vida cotidiana do cidadão planetário.
3 – Movimento pela ecopedagogia
Essa travessia de milênio caracteriza-se por um enorme avanço tecnológico e também por uma enorme imaturidade política: enquanto a Internet nos coloca no centro da Era da Informação, o governo do humano continua muito pobre, gerando misérias e deterioração. Podemos destruir toda a vida do planeta. 500 empresas transnacionais controla 25% da atividade econômica mundial e 80% das inovações tecnológicas. A globalização econômica capitalista enfraqueceu os Estados Nacionais impondo limites para a sua autonomia, subordinando-os à lógica econômica das transnacionais. Gigantescas dívidas externas governam países e impedem a implantação de políticas sociais eqüalizadoras. As empresas transnacionais trabalham para 10% da população mundial que se situa nos países mais ricos, gerando uma tremenda exclusão. Esse é o cenário da travessia, um cenário ainda mais problemático pela falta de alternativas.
Os paradigmas clássicos estão esgotando suas possibilidades de responder adequadamente a esse novo contexto. Não conseguem explicar essa travessia, muito menos, passar por ela. Há uma crise de inteligibilidade diante da qual muitos falsos profetas e charlatães oferecem soluções mágicas. Uma nova espiritualidade surge muito bem aproveitada pelas mercoreligiões. A resposta dada pelo estatismo burocrático e autoritário é tão ineficiente quanto o neoliberalismo do deus mercado. O neoliberalismo propõe mais poder para as transnacionais e os estatistas propõem mais poder para o Estado, reforçando as suas estruturas. No meio de tudo isso está o cidadão comum que não é, nem empresário, nem Estado. A resposta parece estar além deste dois modelos clássicos, mas certamente não numa suposta "terceira via" que deseja apenas dar sobrevida ao capitalismo sofisticando a dominação política, a exploração econômica e provocando enorme exclusão social. A resposta parece vir hoje do fortalecimento do controle cidadão frente ao Estado e ao Mercado, a Sociedade Civil fortalecendo sua capacidade de governar-se e controlar o desenvolvimento. Aqui entra o papel importante da educação, da formação para a cidadania ativa.
Podemos dizer que há uma comunidade sustentável que vive em harmonia com o seu meio ambiente, não causando danos a outras comunidades, nem para a comunidade de hoje, e nem para a de amanhã. E isso não pode constituir-se apenas num compromisso ecológico, mas ético-político, alimentado por uma pedagogia, isto é, por uma ciência da educação e uma prática social definida. Nesse sentido, a ecopedagogia, inserida nesse movimento sócio-histórico, formando cidadãos capazes de escolherem os indicadores de qualidade do seu futuro, se constitui numa pedagogia inteiramente nova e intensamente democrática.
O Movimento pela Ecopedagogia ganhou impulso sobretudo a partir do Primeiro Encontro Internacional da Carta da Terra na Perspectiva da Educação, organizado pelo Instituto Paulo, com o apoio do Conselho da Terra e da UNESCO, de 23 a 26 de agosto de 1999, em São Paulo e do I Fórum Internacional sobre Ecopedagogia, realizado na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Portugal, de 24 a 26 de março de 2000. Desses encontros surgiram os princípios orientadores desse movimento contidos numa "Carta da Ecopedagogia". Eis alguns deles:

1. O planeta como uma única comunidade.
2. A Terra como mãe, organismo vivo e em evolução.
3. Uma nova consciência que sabe o que é sustentável, apropriado, o faz sentido para a nossa existência
4. A ternura para com essa casa. Nosso endereço é a Terra.
5. A justiça sócio-cósmica: a Terra é um grande pobre, o maior de todos os pobres.
6. Uma pedagogia biófila (que promove a vida): envolver-se, comunicar-se, compartilhar, problematizar, relacionar-se entusiasmar-se.
7. Uma concepção do conhecimento que admite só ser integral quando compartilhado.
8. O caminhar com sentido (vida cotidiana).
9. Uma racionalidade intuitiva e comunicativa: afetiva, não instrumental.
10. Novas atitudes: reeducar o olhar, o coração.
11. Cultura da sustentabilidade: ecoformação. Ampliar nosso ponto de vista.
As pedagogias clássicas eram antropocêntricas. A ecopedagogia parte de uma consciência planetária (gêneros, espécies, reinos, educação formal, informal e não-formal...). Ampliamos o nosso ponto de vista. Do homem para o planeta, acima de gêneros, espécies e reinos. De uma visão antropocêntrica para uma consciência planetária, para uma prática de cidadania planetária e para uma nova referência ética e social: a civilização planetária.
Não se pode dizer que a ecopedagogia representa já uma tendência concreta e notável na prática da educação contemporânea. Se ela já tivesse suas categorias definidas e elaboradas, ela estaria totalmente equivocada, pois uma perspectiva pedagógica não pode nascer de um discurso elaborado por especialistas. Ao contrário, o discurso pedagógico elaborado é que nasce de uma prática concreta, testada e comprovada. A ecopedagogia está ainda em formação e formulação como teoria da educação. Ela se está se manifestando em muitas práticas educativas que o "Movimento pela ecopedagogia", liderado pelo Instituto Paulo Freire, tenta congregar.
O Movimento pela Ecopedagogia, surgido no seio da iniciativa da Carta da Terra. Ele está dando apoio ao processo de discussão da Carta da Terra, indicando justamente uma metodologia apropriada que não seja a metodologia da simples "proclamação" governamental, de uma declaração formal, mas a tradução de um processo vivido e da participação crítica da "demanda", como diz Francisco Gutiérrez.
A Carta da Terra deve ser entendida sobretudo como um movimento ético global para se chegar a um código de ética planetário, sustentando um núcleo de princípios e valores que fazem frente à injustiça social e à falta de eqüidade reinante no planeta. Cinco pilares sustentam esse núcleo: a) direitos humanos; b) democracia e participação; c) eqüidade; d) proteção da minoria; e) resolução pacífica dos conflitos. Esses pilares são cimentados por uma visão de mundo solidária e respeitosa da diferença (consciência planetária).
O intercâmbio planetário que ocorre hoje em função da expansão das oportunidades de acesso à comunicação, notadamente através da Internet, deverá facilitar o diálogo inter e transcultural e o desenvolvimento desta nova ética planetária. A campanha da Carta da Terra agrega um novo valor e oferece um novo impulso a esse movimento pela ética na política, na economia, na educação etc. Ela se tornará realmente forte e, talvez, decisiva, no momento em que representar um projeto de futuro um contraprojeto global e local ao projeto político-pedagógico, social e econômico neoliberal, que não só é intrinsecamente insustentável, como também essencialmente injusto e desumano.

4 – A ecopedagogia como pedagogia apropriada ao processo da Carta da Terra
Precisamos de uma "Pedagogia da Terra", uma pedagogia apropriada para esse momento de reconstrução paradigmática, apropriada à cultura da sustentabilidade e da paz, por isso, apropriada ao processo da Carta Terra. Ela vem se constituindo gradativamente, beneficiando-se de muitas reflexões que ocorreram nas últimas décadas, principalmente no interior do movimento ecológico. Ela se fundamenta num paradigma filosófico (Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastião Salgado, Boaventura de Sousa Santos, Milton Santos) emergente na educação que propõe um conjunto de saberes/valores interdependentes. Entre eles podemos destacar:
1º) Educar para pensar globalmente. Na era da informação, diante da velocidade com que o conhecimento é produzido e envelhece, não adianta acumular informações. É preciso saber pensar. E pensar a realidade. Não pensar pensamentos já pensados. Daí a necessidade de recolocarmos o tema do conhecimento, do saber aprender, do saber conhecer, das metodologias, da organização do trabalho na escola.
2º) Educar os sentimentos. O ser humano é o único ser vivente que se pergunta sobre o sentido de sua vida. Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se, para viver com sentido em cada instante da nossa vida. Somos humanos porque sentimos e não apenas porque pensamos. Somos parte de um todo em construção.
3º) Ensinar a identidade terrena como condição humana essencial. Nosso destino comum no planeta, compartilhar com todos, sua vida no planeta. Nossa identidade é ao mesmo tempo individual e cósmica. Educar para conquistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas para amá-la.
4º) Formar para a consciência planetária. Compreender que somos interdependentes. A Terra é uma só nação e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não precisaríamos de passaportes. Em nenhum lugar na Terra deveríamos nos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiro mundo, significa dividir o mundo para governá-lo a partir dos mais poderosos; essa é a divisão globalista entre globalizadores e globalizados, o contrário do processo de planetarização.
5º) Formar para a compreensão. Formar para a ética do gênero humano, não para a ética instrumental e utilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não comunicar para explorar, para tirar proveito do outro, mas para compreendê-lo melhor. A Pedagogia da Terra funda-se nesse novo paradigma ético e numa nova inteligência do mundo. Inteligente não é aquele que sabe resolver problemas (inteligência instrumental), mas aquele que tem um projeto de vida solidário. Porque a solidariedade não é hoje apenas um valor. É condição de sobrevivência de todos.
6º) Educar para a simplicidade e para a quietude. Nossas vidas precisam ser guiadas por novos valores: simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, saber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos. Precisamos escolher entre um mundo mais responsável frente à cultura dominante que é uma cultura de guerra, de competitividade sem solidariedade, e passar de uma responsabilidade diluída à uma ação concreta, praticando a sustentabilidade na vida diária, na família, no trabalho, na escola, na rua. A simplicidade não se confunde com a simploriedade e a quietude não se confunde com a cultura do silêncio. A simplicidade tem que ser voluntária como a mudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossas demandas. A quietude é uma virtude, conquistada com a paz interior e não pelo silêncio imposto.
É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe que todas e todos tenham acesso à qualidade de vida. Seria cínico falar de redução de demandas de consumo, atacar o consumismo, falar de consumismo aos que ainda não tiveram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem justiça.
Diante do possível extermínio do planeta, surgem alternativas numa cultura da paz e uma cultura da sustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenas com a biologia, a economia e a ecologia. Sustentabilidade tem a ver com a relação que mantemos conosco mesmos, com os outros e com a natureza. A pedagogia deveria começar por ensinar sobretudo a ler o mundo, como nos diz Paulo Freire, o mundo que é o próprio universo, por que é ele nosso primeiro educador. Essa primeira educação é uma educação emocional que nos coloca diante do mistério do universo, na intimidade com ele, produzindo a emoção de nos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em evolução permanente.
Não entendemos o universo como partes ou entidades separadas, mas como um todo sagrado, misterioso, que nos desafia a cada momento de nossas vidas, em evolução, em expansão, em interação. Razão, emoção e intuição são partes desse processo, onde o próprio observador está implicado. O Paradigma-Terra é um paradigma civilizatório. E como a cultura da sustentabilidade oferece uma nova percepção da Terra, considerando-a como uma única comunidade de humanos, ela se torna básica para uma cultura de paz.
O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Está muito próximo de nós. Um pequeno jardim, uma horta, um pedaço de terra, é um microcosmos de todo o mundo natural. Nele encontramos formas de vida, recursos de vida, processos de vida. A partir dele podemos reconceitualizar nosso currículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo podemos aprender muitas coisas. As crianças o encaram como fonte de tantos mistérios! Ele nos ensina os valores da emocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivência, os valores da paciência, da perseverança, da criatividade, da adaptação, da transformação, da renovação... Todas as nossas escolas podem transformar-se em jardins e professores-alunos, educadores-educandos, em jardineiros. O jardim nos ensina ideais democráticos: conexão, escolha, responsabilidade, decisão, iniciativa, igualdade, biodiversidade, cores, classes, etnicidade, e gênero.
"Carta" significa "mapa", um mapa para nos guiar nessa travessia conturbada. A Carta da Terra, nesse sentido, precisa ser considerada como um código de ética planetária a nos guiar hoje para um mundo onde predominem os valores da solidariedade e da sustentabilidade, um projeto, um movimento, um processo, que pode transformar o risco de extermínio em oportunidade histórica, transformar o temor em esperança. Adotar e promover a prática de seus valores, não pode ser apenas o compromisso de Estados e Nações, mas de cada ser humano, individual, pessoal, como sujeito da história, como vem promovendo o Manifesto 2000 da UNESCO. Precisamos de uma cultura de paz com justiça social para enfrentar a barbárie. Se aceitamos a barbárie, acostumamo-nos a um cotidiano de violência e de insustentabilidade.
No nosso livro Pedagogia da Terra defendemos a necessidade de uma Carta da Terra associada a um processo de paz, a uma cultura de paz. E, como a Carta da Terra é um documento ético, precisa da educação para tornar-se cada vez mais conhecido. Mas precisamos não só de mudança na consciência das pessoas. Precisamos de mudanças estruturais no campo econômico, como as propostas pela Agenda 21. A Carta da Terra precisa estar associada também à Agenda 21 e ter um grande suporte na sociedade civil. Os governos podem assinar tratados, podem adotar a Carta da Terra, mas não cumprirão suas promessas se a sociedade civil não estiver vigilante e não pressionar os governantes para que eles cumpram o que assumem. O que foi socialmente construído pode ser socialmente transformado. Um outro mundo é possível. Uma outra globalização é possível. Precisamos chegar lá juntos e, sobretudo, em tempo.

Crise ecológica, capitalismo, altermundialissmo:um ponto de vista ecossocialista , artigo de Michael Lowi

Os ecologistas se enganam se crêem poder abrir mão da crítica de Marx ao capitalismo: uma ecologia que não leve em conta a relação entre “produtivismo” e lógica do lucro está destinada ao fracasso – ou pior, à sua recuperação pelo sistema. Os exemplos não faltam… A ausência de uma postura anticapitalista coerente levou a maior parte dos partidos verde europeus – França, Alemanha, Itália, Bélgica – a tornar-se simples parceiro “ecoreformista” da gestão social-liberal do capitalismo pelos governos de centro-esquerda. A opinião é de Michael Löwy em artigo para o n° 14 da revista Grandezas e limites da ecologia

A grande contribuição da ecologia foi e continua sendo nos fazer tomar consciência dos perigos que ameaçam o planeta como consequência do atual modelo de produção e consumo. O crescimento exponencial das agressões ao meio ambiente e a ameaça crescente de uma ruptura do equilíbrio ecológico configuram um quadro catastrófico que coloca em questão a própria sobrevivência da vida humana. Estamos diante de uma crise de civilização que exige mudanças radicais.

Os ecologistas se enganam se crêem poder abrir mão da crítica marxiana do capitalismo: uma ecologia que não leve em conta a relação entre “produtivismo” e lógica do lucro está destinada ao fracasso – ou pior, à sua recuperação pelo sistema. Os exemplos não faltam… A ausência de uma postura anticapitalista coerente levou a maior parte dos partidos verde europeus – França, Alemanha, Itália, Bélgica – a tornar-se simples parceiro “ecoreformista” da gestão social-liberal do capitalismo pelos governos de centro-esquerda.
Considerando os trabalhadores irremediavelmente destinados ao produtivismo, alguns ecologistas ignoram/descartam o movimento operário e inscrevem em suas bandeiras: “nem esquerda, nem direita”.
Ex-marxistas convertidos à ecologia declaram apressadamente “adeus à classe operária” (André Gorz), enquanto outros autores (Alain Lipietz) insistem na necessidade de abandonar o “vermelho” – isto é, o marxismo ou o socialismo – para aderir ao “verde”, novo paradigma que trará uma resposta a todos os problemas econômicos e sociais.

O ecossocialismo
O que é então o ecossocialismo? Trata-se de uma corrente de pensamento e ação ecológicos que toma como suas as aquisições fundamentais do marxismo – ao mesmo tempo que se livra de seus entulhos produtivistas.
Para os ecossocialistas a lógica do mercado e do lucro – bem como aquela do defunto do autoritarismo burocrático, o “socialismo real” – são incompatíveis com as exigências de preservação do meio ambiente. Ao mesmo tempo que criticam a ideologia das correntes dominantes do movimento operário, eles sabem que os trabalhadores e suas organizações são uma força essencial para uma transformação radical do sistema e para a construção de uma nova sociedade socialista e ecológica.
Essa corrente está longe de ser politicamente homogênea, mas a maior parte de seus representantes compartilha alguns temas. Rompendo com a ideologia produtivista do progresso – em sua forma capitalista e/ou burocrática – e oposta à expansão ao infinito de um modo de produção e consumo destruidor da natureza, o ecossocialismo representa uma tentativa original de articular as ideias fundamentais do socialismo marxista com as contribuições da crítica ecológica.
O raciocínio ecossocialista se apoia em dois argumentos essenciais:
1) o modo de produção e consumo atual dos países capitalistas avançados, fundado sobre uma lógica de acumulação ilimitada (do capital, dos lucros, das mercadorias), desperdício de recursos, consumo ostentatório e destruição acelerada do meio ambiente, não pode de forma alguma ser estendido para o conjunto do planeta, sob pena de uma crise ecológica maior. Segundo cálculos recentes, se o consumo médio de energia dos EUA fosse generalizado para o conjunto da população mundial, as reservas conhecidas de petróleo seriam esgotadas em 19 dias. Esse sistema está, portanto, necessariamente fundado na manutenção e agravamento da desigualdade entre o Norte e o Sul;
2) de qualquer maneira, a continuidade do “progresso” capitalista e a expansão da civilização fundada na economia de mercado – até mesmo sob esta forma brutalmente desigual – ameaça diretamente, a médio prazo (toda previsão seria arriscada), a própria sobrevivência da espécie humana, em especial por causa das consequências catastróficas da mudança climática.
A racionalidade limitada do mercado capitalista, com seu cálculo imediatista das perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória com uma racionalidade ecológica, que leve em conta a temporalidade longa dos ciclos naturais.
Não se trata de opor os “maus” capitalistas ecocidas aos “bons” capitalistas verdes: é o próprio sistema, fundado na competição impiedosa, nas exigências de rentabilidade, na corrida pelo lucro rápido, que é destruidor dos equilíbrios naturais. O pretenso capitalismo verde não passa de uma manobra publicitária, uma etiqueta buscando vender uma mercadoria, ou, no melhor dos casos, uma iniciativa local equivalente a uma gota-d’água sobre o solo árido do deserto capitalista.
Contra o fetichismo da mercadoria e a autonomização reificada da economia pelo neoliberalismo, o que está em jogo no futuro para os ecossocialistas é pôr em prática uma “economia moral” no sentido dado por Edward P. Thompson a este termo, isto é, uma política econômica fundada em critérios não monetários e extraeconômicos: em outras palavras, a reconciliação do econômico no ecológico, no social e no político.
As reformas parciais são totalmente insuficientes: é preciso substituir a microrracionalidade do lucro pela macrorracionalidade social e ecológica, algo que exige uma verdadeira mudança de civilização . Isso é impossível sem uma profunda reorientação tecnológica, visando a substituição das fontes atuais de energia por outras não poluentes e renováveis, como a eólica ou solar . A primeira questão colocada é, portanto, a do controle sobre os meios de produção e, principalmente, sobre as decisões de investimento e transformação tecnológica, que devem ser arrancados dos bancos e empresas capitalistas para tornarem-se um bem comum da sociedade.
Certamente, a mudança radical se relaciona não só com a produção, mas também com o consumo. Entretanto, o problema da civilização burguês-industrial não é – como muitas vezes os ecologistas argumentam – “o consumo excessivo” pela população e a solução não é uma “limitação” geral do consumo, sobretudo nos países capitalistas avançados. É o tipo de consumo atual, fundado na ostentação, no desperdício, na alienação mercantil, na obsessão acumuladora, que deve ser colocado em questão.

Ecologia e altermundialismo
Sim, nos responderão, é simpática essa utopia, mas por enquanto é preciso ficar de braços cruzados? Certamente não! É preciso lutar por cada avanço, cada medida de regulamentação, cada ação de defesa do meio ambiente. Cada quilômetro de estrada bloqueado, cada medida favorável aos transportes coletivos é importante; não somente porque retarda a corrida em direção ao abismo, mas porque permite às pessoas, aos trabalhadores, aos indivíduos se organizar, lutar e tomar consciência do que está em jogo nesse combate, de compreender, por sua experiência coletiva, a falência do sistema capitalista e a necessidade de uma mudança de civilização.
É nesse espírito que as forças mais ativas da ecologia estão engajadas, desde o início, no movimento altermundialista. Tal engajamento corresponde à tomada de consciência de que os grandes embates da crise ecológica são planetários e, portanto, só podem ser enfrentados por uma démarche resolutamente cosmopolítica, supranacional, mundial. O movimento altermundialista é sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência antisistêmica do início do século XXI.
Essa vasta nebulosa, espécie de “movimento dos movimentos” que se manifesta de forma visível nos Fóruns Sociais – regionais e mundiais – e nas grandes manifestações de protesto – contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), o G8 ou a guerra imperial no Iraque – não corresponde às formas habituais de ação social ou política. Ampla rede descentralizada, ele é múltiplo, diverso e heterogêneo, associando sindicatos operários e movimentos camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, essa pluralidade é uma das fontes da força, crescente e expansiva, do movimento.
Pode-se afirmar que o ato de nascimento do altermundialismo foi a grande manifestação popular que fez fracassar a reunião da OMC em Seattle, em 1999. A cabeça visível desse combate era a convergência surpreendente de duas forças: turtles and teamsters, ecologistas vestidos de tartarugas (espécie ameaçada de extinção) e sindicalistas do setor de transportes. Portanto, a questão ecológica estava presente, desde o início, no coração das mobilizações contra a globalização capitalista neoliberal. A palavra de ordem central desse movimento, “o mundo não é uma mercadoria”, visa também, evidentemente, o ar, a água, a terra, isto é, o ambiente natural, cada vez mais submetido aos ditames do capital.
Podemos afirmar que o altermundialismo comporta três momentos: 1) o protesto radical contra a ordem existente e suas sinistras instituições: o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o G8; 2) um conjunto de medidas concretas, propostas passíveis de serem imediatamente realizadas: a taxação dos capitais financeiros, a supressão da dívida do Terceiro Mundo, o fim das guerras imperialistas; 3) a utopia de um “outro mundo possível”, fundado sobre valores comuns como liberdade, democracia participativa, justiça social e defesa do meio ambiente.
A dimensão ecológica está presente nesses três momentos: ela inspira tanto a revolta contra um sistema que conduz a humanidade a um trágico impasse, quanto um conjunto de propostas precisas – moratória sobre os OGMs (Organismos Geneticamente Modificados), desenvolvimento de transportes coletivos gratuitos –, bem como a utopia de uma sociedade vivendo em harmonia com os ecossistemas, esboçada pelos documentos do movimento. Isso não quer dizer que não existam contradições, fruto tanto da resistência de setores do sindicalismo às reivindicações ecológicas, percebidas como uma “ameaça ao emprego”, quanto da natureza míope e pouco social de algumas organizações ecológicas. Mas uma das características mais positivas dos Fóruns Sociais, e do altermundialismo em seu conjunto, é a possibilidade do encontro, debate, diálogo e da aprendizagem recíproca de diferentes tipos de movimentos.
É preciso acrescentar que o próprio movimento ecológico está longe de ser homogêneo: é muito diverso e contem um espectro que vai desde ONGs moderadas habituadas ao lobby como forma de pressão, até os movimentos combativos inseridos num trabalho de base militante; da gestão “realista” do Estado (no nível local ou nacional) às lutas que colocam em questão a lógica do sistema; da correção dos “excessos” da economia de mercado às iniciativas de orientação ecossocialista.
Essa heterogeneidade caracteriza, diga-se de passagem, todo o movimento altermundialista, mesmo com a predominância de uma sensibilidade anticapitalista, sobretudo na América Latina. É a razão pela qual o Fórum Social Mundial, precioso lugar de encontro – como explica tão bem nosso amigo Chico Whitaker – onde diferentes iniciativas podem fincar raízes, não pode se tornar um movimento sociopolítico estruturado, com uma “linha” comum, resoluções adotadas por maioria etc.
É importante sublinhar que a presença da ecologia no “movimento dos movimentos” não se limita às organizações ecológicas – Greenpeace, WWF, entre outras. Ela se torna cada vez mais uma dimensão levada em conta, na ação e reflexão, por diferentes movimentos sociais, camponeses, indígenas, feministas, religiosos (Teologia da Libertação).
Um exemplo impressionante dessa integração “orgânica” das questões ecológicas por outros movimentos é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, com seus camaradas da rede internacional Via Campesina, é um dos pilares do Fórum Social Mundial e do movimento altermundialista. Hostil desde sua origem ao capitalismo e sua expressão rural, o agronegócio, o MST integrou cada vez mais a dimensão ecológica no seu combate por uma reforma agrária radical e um outro modelo de agricultura. Durante a celebração do vigésimo aniversário do movimento, no Rio de Janeiro em 2005, o documento dos organizadores declarava: nosso sonho de “um mundo igualitário, que socialize as riquezas materiais e culturais”, um novo caminho para a sociedade, “fundado na igualdade entre os seres humanos e nos princípios ecológicos”.
Isto se traduziu nas ações – por diversas vezes à margem da “legalidade” – do MST contra os OGMs, o que é tanto um combate contra a tentativa das multinacionais – Monsanto, Syngenta – de controlar totalmente as sementes, submetendo os camponeses à sua dominação, como uma luta contra um fator de poluição e contaminação incontrolável do campo. Assim, graças a uma ocupação “selvagem”, o MST obteve em 2006 a expropriação do campo de milho e soja transgênicos da Syngenta Seeds no Estado do Paraná, que se tornou o assentamento camponês Terra Livre. É preciso mencionar também seu enfrentamento às multinacionais de celulose que multiplicam, sobre centenas de milhares de hectares, verdadeiros “desertos verdes”, florestas de eucaliptos (monocultura) que secam todas as fontes d’água e destroem toda a biodiversidade. Esses combates são inseparáveis, para os quadros e ativistas do MST, de uma perspectiva anticapitalista radical.
As cooperativas agrícolas do MST desenvolvem, cada vez mais, uma agricultura biologicamente preocupada com a biodiversidade e com o meio ambiente em geral, constituindo assim exemplos concretos de uma forma de produção alternativa. Em julho de 2007, o MST e seus parceiros do movimento Via Campesina organizaram em Curitiba uma Jornada de Agroecologia, com a presença de centenas de delegados, engenheiros agrônomos, universitários e teólogos da libertação (Leonardo Boff, Frei Betto).
Naturalmente, essas experiências de luta não se limitam ao Brasil, sendo encontradas sob formas diferentes em muitos outros países, não apenas no Terceiro Mundo, constituindo-se numa parte significativa do arsenal combativo do altermundialismo e da nova cultura cosmopolítica da qual ele é um dos portadores.
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O fracasso retumbante da Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, de dezembro de 2009, confirma mais uma vez, para quem ainda tinha dúvidas, a incapacidade de governos à serviço dos interesses do capital em enfrentar o problema. Em vez de um acordo internacional obrigatório, com reduções substanciais de emissões de gazes com efeito estufa nos países industrializados – um mínimo de 40% seria necessário – seguida de medidas mais modestas nos países emergentes (China, Índia, Brasil), os Estados Unidos impuseram, com o apoio da Europa e a cumplicidade da China, uma “declaração” completamente vazia, que faz senão reiterar o óbvio : precisamos impedir que a temperatura do planeta suba mais de 2°C.
A única esperança é o movimento social, altermundialista e ecológico, que se expressou em Copenhagen numa grande manifestação de rua – 100 mil pessoas – com o apoio de Evo Morales, cujas declarações anticapitalistas sem ambiguidades foram uma das poucas expressões criticas na conferencia “oficial”. Os manifestantes, assim como o Fórum alternativo KlimaForum, levantaram a palavra de ordem “Mudemos o sistema, não o clima!” Evo Morales convocou um encontro de governos progressistas e movimentos sociais em Cochabamba (abril de 2010) com o objetivo de organizar a luta para salvar a Mãe-Terra, a Pacha-Mama, da destruição capitalista.
(Ecodebate, 26/05/2010) publicado pelo IHU On-line, parceiro estratégico do EcoDebate na socialização da informação.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Saiba O Que É O Capitalismo - Atilio A. Boron


O capitalismo tem legiões de apologistas. Muitos o são de boa fé, produto de sua ignorância e pelo fato de que, como dizia Marx, o sistema é opaco e sua natureza exploradora e predatória não é evidente aos olhos de mulheres e homens. Outros o defendem porque são seus grandes beneficiários e amealham enormes fortunas graças às suas injustiças e iniqüidades. Há ainda outros (‘gurus’ financeiros, ‘opinólogos’ e ‘jornalistas especializados’ , acadêmicos ‘pensantes’ e os diversos expoentes desse "pensamento único") que conhecem perfeitamente bem os custos sociais que o sistema impõe em termos de degradação humana e ambiental. Mas esses são muito bem pagos para enganar as pessoas e prosseguem incansavelmente com seu trabalho. Eles sabem muito bem, aprenderam muito bem, que a "batalha de idéias" para a qual nos convocou Fidel é absolutamente estratégica para a preservação do sistema, e não aplacam seus esforços.
Para contra-atacar a proliferação de versões idílicas acerca do capitalismo e sua capacidade de promover o bem-estar geral, examinemos alguns dados obtidos de documentos oficiais do sistema das Nações Unidas. Isso é extremamente didático quando se escuta, ainda mais no contexto da crise atual, que a solução dos problemas do capitalismo se consegue com mais capitalismo; ou que o G-20, o FMI, a Organização Mundial do Comércio e o Banco Mundial, arrependidos de seus erros passados, poderão resolver os problemas que asfixiam a humanidade. Todas essas instituições são incorrigíveis e irreformáveis, e qualquer esperança de mudança não é nada mais que ilusão. Seguem propondo o mesmo, mas com um discurso diferente e uma estratégia de "relações públicas" desenhada para ocultar suas verdadeiras intenções. Quem tiver duvidas, olhe o que estão propondo para "solucionar" a crise na Grécia: as mesmas receitas que aplicaram e continuam aplicando na América Latina e na África desde os anos 80!
A seguir, alguns dados (com suas respectivas fontes) recentemente sistematizados pelo CROP, o Programa Internacional de Estudos Comparativos sobre a Pobreza, radicado na Universidade de Bergen, Noruega. O CROP está fazendo um grande esforço para, desde uma perspectiva crítica, combater o discurso oficial sobre a pobreza, elaborado há mais de 30 anos pelo Banco Mundial e reproduzido incansavelmente pelos grandes meios de comunicação, autoridades governamentais, acadêmicos e "especialistas" vários.
População mundial: 6.800 bilhões, dos quais...
  • 1,020 bilhão são desnutridos crônicos (FAO, 2009)
  • 2 bilhões não possuem acesso a medicamentos (http://www.fic. nih.gov/)
  • 884 milhões não têm acesso à água potável (OMS/UNICEF, 2008)
  • 924 milhões estão "sem teto" ou em moradias precárias (UN Habitat, 2003)
  • 1,6 bilhão não têm eletricidade (UN HABITAT, "Urban Energy")
  • 2,5 bilhões não têm sistemas de drenagens ou saneamento (OMS/UNICEF, 2008)
  • 774 milhões de adultos são analfabetos (http://www.uis. unesco.org/)
  • 18 milhões de mortes por ano devido à pobreza, a maioria de crianças menores de 5 anos (OMS).
  • 218 milhões de crianças, entre 5 e 17 anos, trabalham precariamente em condições de escravidão e em tarefas perigosas ou humilhantes, como soldados, prostitutas, serventes, na agricultura, na construção ou indústria têxtil (OIT: A eliminação do trabalho infantil: um objetivo ao nosso alcance, 2006).
Entre 1988 e 2002, os 25% mais pobres da população mundial reduziram sua participação na renda global de 1,16% para 0,92%, enquanto os opulentos 10% mais ricos acrescentaram mais às suas fortunas, passando de dispor de 64,7% para 71,1% da riqueza mundial. O enriquecimento de uns poucos tem como seu reverso o empobrecimento de muitos.
Somente esse 6,4% de aumento da riqueza dos mais ricos seria suficiente para duplicar a renda de 70% da população mundial, salvando inumeráveis vidas e reduzindo as penúrias e sofrimentos dos mais pobres. Entenda-se bem: tal coisa se conseguiria se simplesmente fosse possível redistribuir o enriquecimento adicional produzido entre 1988 e 2002 dos 10% mais ricos. Mas nem sequer algo tão elementar como isso é aceitável para as classes dominantes do capitalismo mundial.
Conclusão: se não se combate a pobreza (que nem se fale de erradicá-la sob o capitalismo) é porque o sistema obedece a uma lógica implacável centrada na obtenção do lucro, o que concentra riqueza e aumenta incessantemente a pobreza e a desigualdade sócio-econômica.
Depois de cinco séculos de existência eis o que o capitalismo tem a oferecer. O que estamos esperando para mudar o sistema? Se a humanidade tem futuro, será claramente socialista. Com o capitalismo, em compensação, não haverá futuro para ninguém. Nem para os ricos e nem para os pobres. A frase de Friedrich Engels e também de Rosa Luxemburgo, "socialismo ou barbárie", é hoje mais atual e vigente do que nunca. Nenhuma sociedade sobrevive quando seu impulso vital reside na busca incessante do lucro e seu motor é a ganância. Mas cedo que tarde provoca a desintegração da vida social, a destruição do meio ambiente, a decadência política e uma crise moral. Ainda temos tempo, mas já não tanto.

Atilio A. Boron é diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina.
Traduzido por Gabriel Brito, jornalista

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Semeando Zonas Autônomas - www. protopiawikia.com


A melhor hora é agora


Semeando zonas autônomas
Aspectos Organizacionais  |  Desafiando a criatividade



«"Fui à floresta viver de livre vontade, para sugar o tutano da vida. Aniquilar tudo o que não era vida. Para, quando morrer, não descobrir que não vivi." - Henry David Thoreau»

Uma mentira paira sobre tudo e sobre todos. Cada postura, cada costume e cada objeto é uma prova cabal de nossa fixez ao convencional. Cada exame, do ponto de vista libertário, além de evidenciar o absurdo da submissão inconsciente a esta ordem de coisas nos traz a certeza de que TUDO poderia ser muito diferente. Todos os obstáculos à nossa frente são, de fato, nada mais que costumes, posturas e objetos. Todavia, para se ter idéia da dimensão deste problema, há que se ter em mente que estes costumes populistas, posturas de vanguarda e objetos de poder, pelos quais muita gente poderia morrer, são o que nos separa de todos esses outros mundos possíveis.
Em nome da segurança que supostamente existe nas convenções e reproduções, nós mesmos acabamos apegados a elas, vez ou outra, às vezes consciente, às vezes inconscientemente, numa postura que age contra a nossa própria libertação. As imagens motoras que conhecemos nos levam a isso: nossas categorias e conceitos, assim como nossa tradicional inovação (através da qual atualizamos o tédio que se tornou nosso modo de vida. Vazio. Poderia ser diferente?
De repente notamos que o livre mercado não nos proporciona nada além de uma vida de "livre submissão", as duas formas de organização espacial conseqüentes - o rural, cada vez mais mono, monocultural, e o urbano, cada vez mais segregário - são as únicas a prosperar sobre tudo mais que está em seu caminho, tudo perfeitamente legitimado pelo discurso da servidão voluntária, a base para o maior culto da contemporaneidade, o trabalho. A competitividade fez de todos suas vítimas e a lei de todas as leis, a lei da urbe, fez da monocultura a lei da selva contra a selva. É, a sociedade do contrato cobra seu preço e poucos foram os que conseguiram enxergar nas entrelinhas. As doze badaladas trazem novamente a pergunta: Poderia ser diferente? Mas... O que você realmente faz para que seja diferente? Se a resposta for - separar o lixo, fazer caridade e não comer carne - a indústria da reciclagem, a igreja católica e os ruralistas, plantadores de soja daqueles campos onde antes ficava a Amazônia, ficarão-lhes muito gratos. A essa altura é possível perceber que sua pequena ação cotidiana apenas alimenta o monstro que você pensa combater. Mas então o que fazer para que seja diferente?
Não podemos dizer que temos a resposta. Talvez tenhamos uma das possíveis respostas. E é bem provável que ela passe por um grande segredo, por algo como uma sociedade secreta, e talvez até mesmo por escritos na areia após a jornada. (Que segredo vale a pena se não for compartilhado? Mas não seria um segredo se fosse do conhecimento de todos!) Não vamos dizer o que você deve fazer. Ao invés disso, diremos o que NÓS estamos fazendo. O que não significa de maneira alguma que você algum dia não possa, através da sua vontade, tornar-se um de nós.
O que ambicionamos é transformar a realidade social através de um grande êxodo dos espaços urbanos e da cultura do latifúndio. Acima de tudo ambicionamos a libertação de espaços onde serão erguidas zonas autônomas, comunidades intencionais formadas por grupos das mais diversas inspirações libertárias. Algumas ocultas, outras nômades, mas todas elas agindo com o objetivo de libertar mais territórios (físicos e imaginais) nesta guerra da informação. Por um rizoma de zonas autônomas! - e autonomia deve ser entendida tanto no nível da produção material quanto subjetiva, expandindo-se através do estabelecimento de relações de mutualidade tanto quanto elas forem possíveis - este é no nosso entendimento a expressão mais ameaçadora para o sistema. Fora da cidade, fora da grade, fora do consumo, e já começou, suas sementes já foram lançadas ao ar, o crescimento vegetativo está em andamento.
Gostaríamos de ver as periferias vazias e as elites, assim como seus péla-sacos das classe medíocres (média), desesperados, sentados sobre seu próprio lixo à espera de um gari que nunca chegará. Ver as árvores rachando o asfalto e falanstérios de liberdade sendo erguidos em lugares inusitados, para o desespero do velho e roto latifundiário. Será a vingança de Fourier contra todos aqueles que o tacharam de utópico, delirante e inalcançável. Na medida em que os defensores do sistema forem mostrando suas garras talvez tenhamos que enfrentar as guerras travadas contra os desejosos por retomar a velha ordem custe o que custar. Até lá estaremos preparados. É infinitamente melhor morrer livre e de pé do que viver de joelhos, miseravelmente escravizado para o resto de nossas vidas.
Mas qual seria o preço dessa retirada? O sacrifício do conforto da vida material, da tecnologia, de suas relações pessoais? Não diremos que será fácil ou difícil, diremos que depende da forma como nos relacionaremos uns com os outros e com o mundo ao nosso redor. Poderíamos começar um grande projeto de reciclagem e assumirmos que nada começa com nada. Talvez seria necessário estabelecermos algumas normas com relação àquilo que queremos e aquilo que não queremos - não queremos uma cultura policial, por outro lado nos causa uma certa revolta a idéia de pedófilos se esgueirando sobre crianças (uma igreja católica já é mais que suficiente nesse sentido). Podemos pensar em criar a nossa própria tecnologia, mas essa escolha acompanha uma série de outras escolhas com relação a que tecnologia pode ser utilizada sem causar destruição social e ambiental e qual tecnologia efetivamente nós queremos abolir em nossa trajetória.
Por hora (para que não sejamos tachados de utópicos por algum marxista vulgar) o que podemos fazer é compartilhar algo desse segredo, agindo para a formação de uma zona autônoma, na esperança de que outras em outros lugares possam ser erguidas. Em algum lugar não determinado no mapa, alguns passos já foram dados nesse sentido. Já não estamos mais isolados: o que estamos fazendo é declarar guerra à urbe, à monocultura, ao consumo, à ciência positivista, ao desenvolvimentismo, à competitividade, à solidão, enfim, a um estado de coisas que aí está para transformar em brilho tudo aquilo que há de nos aniquilar. O que queremos fazer erguendo uma zona autônoma é propor uma outra imagem motora, outros lugares e feitos contra o velho sistema. Redes de hospitalidade e solidariedade. Cada pedaço de encantamento resgatado das garras do sistema, algo que é segurança e vida e que, pelo qual, acreditamos vale a pena lutar.
É nesse sentido que estamos agindo e, se depender de nós, o grande Êxodo vai triunfar!

SER(ES) AFINS