segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Lia Diskin - Ética, Cultura de paz - um desafio inadiável

Ética, Cultura de Paz – um desafio inadiável
Lia Diskin
No exuberante imaginário da literatura jainista encontramos uma estória em que duas
crianças, uma cega e a outra perneta, estão brincando numa floresta. Elas não se
conhecem, e estão distantes uma da outra. Inesperadamente, o fogo começa a tomar
conta da mata. A fumaça espalha a notícia ― aves, insetos, animais saem em disparada.
As crianças, entretanto, não se mexem, medo e incerteza as dominam. Gritam por
socorro, e pelos gritos se encontram. Querem fugir do fogo, mas como? Suas falas,
entrecortadas por soluços, tecem e desmancham planos. De pronto, numa sinergia que
as abraça, o menino perneta pula sobre os ombros da criança cega, e esta lhe pede que
oriente seus passos. Graças à altura proporcionada pelo corpo do colega, o perneta
consegue ver as clareiras através da fumaça, e saem triunfantes da floresta.
Esse conto, aparentemente infantil, encerra um repertório de valores e princípios que
permeiam a maioria das correntes filosóficas que se desenvolveram no Sudeste
Asiático. Os grandes temas continuam sendo: viver e deixar viver; interdependência;
visão sistêmica da realidade; ética como instrumento de convivência; unidade
corpo/mente; possessividade e apego como alavancas de conflito e sofrimento; auto-referência
como via de exclusão; e pluralidade de faces na percepção da realidade.
Sobre este último tema, o Prof. Leonard Swidler ― teólogo cristão dedicado ao
diálogo inter-religioso ― desenvolve um estudo muito oportuno a respeito das
características da afirmação da realidade sustentadas na cultura ocidental até o
século XIX. Elas eram absolutas, estáticas e excludentes, provocando durante séculos
a depreciação da produção espiritual, científica, filosófica e cultural do resto da
humanidade. A apropriação do critério de verdade criou domínios de ações imperativas
que moldaram o gênio criativo de gerações inteiras.
As descobertas científicas do século XX e o estudo de culturas e crenças diferentes,
favorecidos pelas migrações em massa, quebraram esse monopólio da verdade
provocando uma mudança radical de percepção. “Esse novo paradigma que está
nascendo”, diz Swidler, “entende todas as afirmações sobre a realidade,
especialmente sobre o sentido das coisas, como sendo: 1) históricas; 2) praxísticas ou
intencionais; 3) perspectivísticas; 4) limitadas pela linguagem ou parciais; 5)
interpretativas, e 6) dialógicas”. Isso nos leva a concluir que o único meio de que
dispomos para ampliar a nossa percepção de realidade é aproximar-nos e dialogar com
outros, sejam eles indivíduos, culturas, disciplinas, organizações ou redes cognitivas.
Mas o diálogo, como vínculo relacional horizontal que legitima o interlocutor, é
extremamente novo no âmbito da convivência humana. Toda modalidade de
relacionamento foi, e em grande escala continua sendo, vertical e hierárquica, onde
uma das partes detém o poder sobre as regras que sustentam a relação: pai/filho,
marido/mulher, professor/aluno, sacerdote/leigo, médico/paciente, militar/civil,
estado/sociedade, patrão/empregado, já tinham seus papéis predeterminados no jogo
da articulação.
A ancestralidade não ficou no passado, ela se atualiza em cada geração constituindo
um reservatório adormecido de memórias e valores que reverberam em todos os níveis
do nosso ser/estar no mundo. Durante centenas de milênios construímos nossa
identidade com base na tribo, comunidade ou grupo de pertença. Como útero coletivo,
essa sociabilidade sincrética era a referência imediata, criadora de sonhos, medos e
possibilidades de futuro. A situação mais trágica e perigosa não era a morte, mas o
banimento, pois ele significava a completa ruptura da vida material, social e espiritual.
O desterrado era literalmente um "ninguém", sem identidade, por haver perdido seu
direito à ancestralidade.
Pesquisas sobre comportamento animal realizadas pelo Prof. Tinbergen 2 mostram que
certas espécies guardam “lembranças” de até três gerações anteriores, sem estarem
submetidas aos mesmos estímulos. Uma das experiências mais curiosas foi realizada
num galinheiro que era atacado freqüentemente por gaviões. Os ovos foram retirados
e transportados para outra região onde não havia esse tipo de predador. Quando a
nova geração, nascida desses ovos, deu origem a outros ovos, estes foram levados para
um terceiro espaço. Poucos dias depois de nascerem, os pesquisadores fizeram passar
por cima do galinheiro um falcão de madeira preso à ponta de um arame. Os pintinhos,
iguais a seus “avós”, reagiram aterrorizados como se o falcão fosse verdadeiro; o
mesmo não acontecia quando a imagem era de uma gaivota, um pato, uma garça ou uma
pomba.
Não podemos concluir que o mesmo se passa com todas as espécies animais, menos
ainda com a humana, porém já dispomos de trabalhos muito interessantes na área da
Etologia, Psicologia e Neurobiologia que nos falam de um “mecanismo liberador inato” –
estrutura herdada do sistema nervoso que predispõe a reação de um animal diante de
uma situação nunca vivida antes ─ um “inconsciente coletivo”, de “campos
morfogenéticos”, de “padrões culturais de comportamento”. Em outras áreas do
conhecimento, as contribuições de Teilhard de Chardin e Jean Gebser têm sido
igualmente estimulantes.
Entretanto, essa continuidade ancestral no universo das relações interpessoais e
institucionais parece estar sofrendo uma ruptura, uma subversão que organiza a vida
privada e pública presentes de um modo nunca antes experimentado pela humanidade.
Essa situação radical, nós a encontramos na habilidade das gerações mais novas para
usar ferramentas, tecnologias e saberes que não estiveram disponíveis na formação
dos que hoje são adultos. O depoimento do Prof. Lord James, graduado em Química na
Universidade de Oxford e antigo vice-chanceler da Universidade de Nova York, é um
exemplo disso. Ao analisar as questões de Química propostas nas provas e exames da
universidade onde se formou, ele disse: “Concluí que não apenas sou incapaz de
resolvê-las, mas que jamais fui capaz de resolvê-las, porque pelo menos dois terços
dessas questões envolvem conhecimentos que simplesmente não existiam quando eu me
graduei”.3
Se a isto somarmos a crescente democratização do conhecimento (isto é, o empenho
por parte das políticas públicas da maioria das nações em alfabetizar suas populações
e promover o acesso a estudos superiores), a quantidade monumental de informações
que são geradas e postas em circulação a cada minuto, a difusão das artes em todas
suas modalidades, o encontro fecundo da diversidade cultural e o fato inaudito de que
a cada três anos se duplica o caudal de conhecimentos disponíveis (fato que até 1950
levava gerações inteiras), então a questão óbvia que se levanta é: que tipo de conhe-cimento
será capaz de minimizar as estrondosas injustiças sociais, a exclusão
geradora de violência, a ação predatória sobre os parcos recursos que restaram no
planeta e a falta de solidariedade e calor humano não apenas com os menos
favorecidos, mas no seio das próprias famílias?
Se, como se afirma, o conhecimento é gerador de comportamentos, o que nos
aconteceu? Que qualidade de conhecimentos temos priorizado para nos deparar com
situações tão aberrantes quanto a criminalidade infantil, o extermínio de populações
inteiras por questões ideológicas, étnicas ou religiosas, o consumo gigantesco de
antidepressivos (inclusive entre crianças), a ostentação de altos índices de audiência
por programas televisivos nos quais o deboche e a humilhação humana parecem não ter
limites, a justificação da corrupção como um mal necessário e impossível de ser
erradicado, o desinteresse pelas questões públicas, a incapacidade de lidar com a
frustração, o sentimento generalizado de apatia e impotência?
A ÉTICA ENTRA EM CENA
Os conceitos, como tudo o que é gerado pelo homem, têm história -- movem-se no
tempo adquirindo as feições que lhes empresta a dinâmica cultural e social. O termo
ética não é uma exceção; nasce em solo grego, entre os pré-socráticos, especialmente
em Homero e Hesíodo, e tem o sentido de “morada, hábitat, toca de animais”. O termo
êthos (com eta inicial) faz referência a uma espacialidade física mensurável, com três
características bem definidas: a) a sobrevivência está garantida pelas condições
naturais que constituem o entorno do organismo; b) a ameaça à existência por parte
de predadores está atenuada, e c) há possibilidades de conforto, segurança e
familiaridade com seus pares.
A metáfora contemporânea desse conceito pode ser vista no filme ET, que gira em
torno da insistência do personagem principal em “voltar para casa”, reencontrar-se
com as suas referências, com aquilo que lhe é familiar e natural, onde sua própria vida
pode achar significado e direção. O motivo da terra-mãe, espaço sagrado ou paraíso,
está presente na vitalidade de todas as culturas, seja através de mitos, lendas,
contos, ritos ou mesmo das diferentes terapias contemporâneas.
É com Aristóteles que essa espacialidade deixa de ser física para tornar-se uma
disposição interna dos humanos, passando a significar “caráter, índole, hábito,
natureza, costume” (ethos, com épsilon inicial). Essa transposição corresponde à
mudança de foco das próprias investigações filosóficas daquele tempo: enquanto os
primeiros pensadores gregos tinham por objetivo compreender a origem do Universo a
partir da sua constituição material ou dos seus elementos ― afastando-se das
explicações mitológicas de seus predecessores ― de Sócrates em diante as questões
relevantes giram em torno da alma, do conhecimento, da beleza e da justiça.
Para Aristóteles, o caráter, a natureza ou índole humanos, visam o bem, “toda arte e
toda investigação e todo ato e todo propósito parecem ter em mira um bem; por isso
definem o bem como aquilo a que todos aspiram”, diz na sua Ética a Nicômaco, e
acrescenta: “De todos os bens, a felicidade é o supremo.” A consolidação de hábitos e
disposição do caráter devem ter por objetivo o bem comum, o que implica ir além da
simples satisfação de impulsos e desejos auto-referendados. Essa prática sobre
assuntos públicos teve lugar na Ágora da polis grega, no conviver democrático, no
exercício popular de legitimar o diferente. E é lá, na praça e no mercado, que a
disposição interna para o bem adquire seu ideal vivente na figura do sábio ― único
digno de admiração e imitação. A educação, então, será o instrumento por excelência
para atingir esse modelo de ação prudente, justa e bela.
O termo ética continua transitando, e chega ao mundo romano onde é traduzido pela
expressão latina mor-mores: “costume, norma de conduta, hábito”. Contudo, o ideal a
ser emulado já não é o do sábio, mas o do legionário e do jurisconsulto, que conquistam espaços e poder na concretude da terra, não mais na fluidez do espírito. Aqui cabe
lembrar a advertência do Prof. Raimon Panikkar 4 quanto a traduzir termos de uma
língua ou cultura para outra; a linguagem está profundamente enraizada no espaço-tempo
de uma comunidade, ela tem a ver com a topografia, o clima, o entorno imediato
que se apresenta aos sentidos de um observador, e igualmente com a tradição que se
desenvolveu nessa espacialidade particular. O que podemos fazer, diz Panikkar, é
assinalar homeomorfismos (homeo = semelhante, morfo = forma), isto é, termos com
funções aproximativas, mas não idênticas, pois não conseguem esgotar a significância
conceitual que eles tinham no seu solo natal.
Assim sendo, apoiados na história, podemos afirmar que, enquanto o ethos indica algo
que se constrói, educa, pratica e conquista pela ação conjunta do indivíduo e seu
entorno, o mor-mores revela um sentido normativo, vertical, autoritário, que pede
obediência e uniformidade. No primeiro, deparamo-nos com um sistema aberto, que
pressupõe uma dinâmica criativa de aprendizagem e adaptação às circunstâncias reais
e imprevisíveis do cotidiano. No segundo, com um sistema fechado, no qual as
respostas já estão prontas e independem das novas informações que possam chegar ao
indivíduo e sua comunidade. Aqui não há retro-alimentação, apenas repetição e
confirmação do já sabido.
A moral, nascida em Roma e consolidada em um Império que se estendeu das ilhas
Britânicas ao norte da África, e da Península Ibérica ao Himalaia, uniformizando
povos, costumes e crenças sob uma mesma ordem e autoridade, assumiu o caráter de
via salvífica. Portanto não era suficiente impô-la, havia que torná-la desejável. Esta é a
nossa herança imediata: códigos normativos de comportamento que assegurem a
continuidade do controle e do poder; que impeçam o surgimento do imprevisível e
espontâneo, do contraditório e paradoxal (pois não existem regras disponíveis para
dar conta disso), e que, sobretudo, convençam o indivíduo de que a obediência a esses
códigos é para o seu bem, sua felicidade e garantia de futuro para si e as gerações
vindouras.
As ideologias do século XX, responsáveis pela morte em massa de centenas de milhões
de indivíduos, são filhas legítimas dessa via salvífica que justifica racionalmente a
exclusão e a eliminação como meios para se construir uma sociedade mais “justa” e
“pacífica”. A obra de Hannah Arendt 5 é um alerta contra essa cilada, ao analisar a
relação direta entre o mal e a ausência de pensamento, de reflexão sobre as
conseqüências das escolhas individuais e coletivas, a curto e longo prazo. Mas sabemos
que toda escolha carrega uma intencionalidade moldada por valores, que em grande
parte não são percebidos de maneira consciente, eles "estão incrustados na substância
dos nossos pensamentos a respeito do mundo e de nós mesmos, constituindo a armação
de concepções e categorias que não são da nossa própria criação, mas que a sociedade
entregou para nós já pré-fabricados, e em cujo âmbito todo nosso pensar individual,
por mais original e ousado que seja, está obrigado a se mover".6
TEORIA DOS VALORES
Hoje não é possível falar-se em ética sem fazer referência à teoria dos valores, e, ao
abordá-la, teremos de fazê-lo da maneira mais isenta em termos globais, sem excluir
ou desconsiderar o repertório particular de cada cultura, etnia, comunidade ou credo.
Como muito bem assinala o filósofo peruano David Sobrevilla 7 acerca dos pré-requisitos
para qualquer proposta de uma ética universal: 1) ela não deve ser
etnocêntrica; 2) não deve apoiar-se em verdades superiores, mas em razões que se
possam expor e debater, e 3) não deve referir-se apenas aos seres humanos, deve
contemplar também a natureza.
Quando falamos em teoria dos valores ou axiologia, entretanto, também nos
defrontamos com uma multiplicidade de conceitos postulados por diferentes
correntes filosóficas. O termo valor tem sua origem grega em axiós: o que tem
sentido, isto é, direção; o que é significante, relevante. Nietzsche foi um dos
primeiros que atribuiu ao valor a responsabilidade de fundamento das concepções de
mundo e de vida, interpretando as atitudes filosóficas não como posições do
pensamento perante a realidade, mas como a expressão de atos de preferir e preterir.
É nos séculos XIX e XX que surge a teoria dos valores como disciplina filosófica
autônoma. Entre os inúmeros trabalhos nessa área, cabe destacar o do Prof. Miguel
Reale, que abre uma corrente denominada “historicismo axiológico”, onde os termos
cultura, história e axiologia estão profundamente imbricados pois, como ele diz, “os
valores são fruto das diferentes projeções do espírito humano sobre a natureza,
desenvolvendo-se e manifestando-se ao longo da história.8
E AGORA, JOSÉ?
“A sociedade perdeu seus valores!” “É necessário resgatar os valores!” Esses são
clamores desesperados que ouvimos diariamente em todos os cantos do fazer humano.
Mas de quais valores falamos? De que cultura, etnia, credo ou comunidade?
Pertencentes a que tipo de articulação social? Todos os repertórios que chegaram a
nós são etnocêntricos, isto é, validados por uma história, cultura e crença
particulares. Eles não dão conta da dinâmica com múltiplas referências que
caracteriza a sociedade planetária em que vivemos hoje. Contudo, é possível ampliar
seus horizontes legitimando as diferenças e reafirmando os princípios inalienáveis da
liberdade e dignidade. Nesse sentido, o teólogo ecumênico Hans Küng 9 oferece uma
reflexão ao falar em “transformação de valores”, na qual propõe:
• A passagem de uma ciência sem ética para uma ciência eticamente responsável.
• A passagem de uma tecnocracia que domina as pessoas para uma tecnologia que
serve à humanidade das pessoas.
• A passagem de uma indústria que destrói o meio ambiente para uma indústria que
promove os verdadeiros interesses e necessidades das pessoas, em harmonia com
a natureza.
• A passagem de uma democracia formalmente de direito para uma democracia
vivida, na qual liberdade e justiça estão reconciliadas.
Estas podem ser boas pistas pelas quais nortear a geração de novos conhecimentos ―
matrizes de novos comportamentos. Uma ética genuinamente universal talvez seja a
maior tarefa que temos pela frente. Ela exigirá toda a nossa humildade e
solidariedade porque, como na história das duas crianças que brincam na floresta,
todos nós somos um pouco “cegos” e igualmente “pernetas”. Exigirá, sobretudo,
disposição para abrirmos mão da pretensa possessão da verdade, justificadora do
controle, da imposição e até da eliminação dos que não se submetem a ela.
Sabemos que uma tal ética não nasce mediante a simples declaração de intenções. Ela
é fruto ― como diz o Prof. Maturana ― de uma “rede de conversações consensuais em
convivência” que carrega anseios coletivos, sonhos acalentados de crescimento e
confirmação. Mas também sabemos, ou “sentimos”, que essa ética universal já está em
gestação, não só nos cérebros privilegiados de artistas e acadêmicos, ela está numa
nova Ágora -- na internet, no seio das famílias, das organizações, das comunidades
aprendentes; nas ruas, nas feiras e nos bairros. Nos gestos de responsabilidade
coletiva dos empresários, dos centros comunitários, das agremiações, das
universidades e, até, das religiões.
Ela se articula hoje no movimento mundial desencadeado pela UNESCO através do
Manifesto 2000, concebido por um grupo de laureados com o Prêmio Nobel da Paz
reunidos em Paris para a celebração do 50º aniversário da Declaração universal dos
Direitos Humanos. Esse Manifesto assinala comportamentos e atitudes cuja prática
viabiliza relacionamentos construtivos e salutares, na esfera interpessoal, com o meio
ambiente e com a comunidade global da qual participamos.
Sua proposta consiste em 6 princípios: respeitar a vida; rejeitar a violência; ser
generoso; ouvir para compreender; preservar o planeta e redescobrir a solidariedade.
CULTURA DE PAZ – HISTÓRICO E AFLUENTES
Entretanto, o próprio Manifesto 2000 é, por sua vez, resultado de um processo de
reflexões e movimentos sociais bem-sucedidos que mancomunam esforços em prol da
paz, da liberdade e da justiça.
O conceito de paz ganha novos contornos, amplia horizontes e abandona a acepção de
hiato entre guerras, ausência de confrontos a respeito dos quais pouco ou nada
podemos fazer, além de aceitá-los como fatalidades iniludíveis, como fenômenos
atmosféricos que escapam ao nosso controle.
A carta de constituição da UNESCO, aprovada em Londres em 1945, afirma: “Os
governos dos Estados Membros, em nome de seus povos declaram: que posto que as
guerras nascem na mente dos homens, é na mente dos homens que devem erigir-se os
baluartes da Paz...” E anos mais tarde, em 1955, o filósofo Bertrand Russell e o
cientista Albert Einstein lançam ao mundo o manifesto que leva seus nomes, onde
conclamam: “Não falamos nesta ocasião como membros desta ou daquela nação,
continente ou credo, mas como seres humanos, membros da espécie humana, cuja
continuidade foi posta em dúvida. (...) Devemos aprender a pensar de um modo novo
(...) Diante de nós, se quisermos, estão progresso contínuo em felicidade,
conhecimento e sabedoria. Escolheremos a morte em vez disso só porque não podemos
esquecer nossas brigas? Apelamos como seres humanos aos seres humanos: se
lembrem de sua humanidade e esqueçam o resto”.
Desse modo, e alimentada por uma série de conferências, colóquios e resoluções
internacionais, emerge o conceito de Paz Positiva que, como explica o Prof. Johan
Galtung ― pioneiro nos estudos das mudanças históricas provocadas por movimentos
sociais comprometidos com a não-violência ― é a conjugação de fatores individuais e
sociais que favorece a realização afetiva, física e mental do potencial humano. Logo, a
antítese da paz é a violência. Nessa mesma vertente Paulo Freire esclarece: “A paz se
cria e constrói com a superação das realidades sociais perversas. A paz se cria e
constrói com a edificação incesante da justiça social”. 10
A seguir relacionamos e sintetizamos alguns documentos e conferências internacionais
que, pela sua relevância e atualidade, tornaram-se referências para a Cultura de Paz. 11
• Declaração sobre a Violência ― Sevilha, Espanha, 1986
[...] É cientificamente incorreto dizer que herdamos uma tendência a fazer guerra
de nossos ancestrais animais [...]. O fato de que a guerra mudou tão radicalmente
ao longo do tempo indica que é um produto cultural. O elo da guerra com a biologia
se estabelece fundamentalmente através da linguagem, que possibilita a
coordenação de grupos, a transmissão da tecnologia e o uso de ferramentas.
A guerra é biologicamente possível, mas não inevitável, como demonstrado pela
variação de sua natureza e freqüência dentro do tempo e do espaço. Há culturas
que não se envolveram na guerra durante séculos, e há culturas que estiveram em
guerra freqüentemente em alguns períodos e não em outros.
• A Carta da Terra ― elaborado mediante consulta internacional iniciada em
1997
Desafios para o Futuro: A escolha é nossa: formar uma aliança global para cuidar da
Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida.
Devemos entender que, quando as necessidades básicas forem atingidas, o
desenvolvimento humano será primeiramente voltado a ser mais, não a ter mais.
Temos o conhecimento e a tecnologia necessários para abastecer a todos e reduzir
nossos impactos ao meio ambiente. O surgimento de uma sociedade civil global está
criando novas oportunidades para construir um mundo democrático e humano.
Nossos desafios ambientais, econômicos, políticos, sociais e espirituais estão
interligados, e juntos podemos forjar soluções includentes.
• Declaração sobre a Paz na Mente dos Homens ― Yamoussoukro, África, 1989
Programa de Paz
• Ajudar na construção de uma nova visão de paz, desenvolvendo uma cultura de
paz baseada nos valores universais de respeito à vida, liberdade, justiça,
solidariedade, tolerância, direitos humanos e igualdade entre mulheres e
homens.
• Aumentar a consciência do destino comum de toda a humanidade para fomentar
a implementação de políticas comuns que assegurem justiça nas relações entre
seres humanos e uma parceria harmoniosa entre humanidade e natureza.
• Incluir elementos de paz e direitos humanos como características permanentes
de todos os programas educacionais.
• Encorajar ações coordenadas em nível internacional para gerenciar e proteger
o meio-ambiente e assegurar que as atividades praticadas sob a autoridade ou
o controle de um Estado em particular não comprometam a qualidade ambiental
de outros Estados nem causem dano à biosfera.
• Fórum Internacional sobre a Cultura de Paz ― San Salvador, El Salvador,
1994
XI – Conclusões Gerais
a. O objetivo de uma cultura de paz é assegurar que os conflitos inerentes ao
relacionamento humano sejam resolvidos de forma não-violenta, com base nos
valores tradicionais de paz, incluindo-se a justiça, liberdade, eqüidade,
solidariedade, tolerância e respeito pela dignidade humana.
b. A paz e os direitos humanos são indivisíveis e dizem respeito a todos. Um
princípio norteador da paz é que os direitos humanos devem ser respeitados e
garantidos – não só os direitos civis e políticos, mas também os direitos
econômicos, sociais e culturais.
c. A implementação de uma cultura de paz requer uma mobilização universal de
todos os meios de comunicação e educação, formais e informais. Todas as
pessoas deveriam ser educadas nos valores básicos da cultura de paz. Este
deve ser um esforço conjunto que inclui cada uma e todas as pessoas da
sociedade.
d. Uma cultura de paz requer aprendizado e uso de novas técnicas para o
gerenciamento e resolução pacífica de conflitos. As pessoas devem aprender
como encarar os conflitos sem recorrer à violência ou dominação e dentro de
um quadro de respeito mútuo e diálogo permanente.
• II Fórum Internacional sobre Cultura de Paz −Manila, Filipinas, 1995.
• Os programas educacionais deveriam incluir informação sobre movimentos
sociais (nacionais e internacionais) em favor da paz e não-violência, democracia
e desenvolvimento eqüitativo;
• O ensino da história deveria ser sistematicamente revisto e reformulado para
dar tanta ênfase às mudanças sociais não-violentas, quanto se dá a seus
aspectos militaristas, dando especial atenção à contribuição das mulheres.
• Conferência de Apelo de Haia pela Paz ― que elaborou o Programa do século
XXI pela Paz e a Justiça, Haia, Holanda, 1999.
Quatro pontos principais desenvolvidos pelo documento:
1. O desarmamento e a segurança humana.
2. A prevenção, resolução e transformação de conflitos violentos.
3. O direito e as instituições internacionais nos âmbitos humanitário e de direitos
humanos.
4. As causas principais da guerra / a cultura de paz
Destes documentos, elaborados com o aporte da diversidade cultural, étnica, nacional ,
de gênero e religiosa do mundo inteiro, emergem os eixos e fundamentos da Cultura de
Paz, a saber: Desenvolvimento Sustentável, Direitos Humanas, Democracia e
Desarmamento, cuja articulação permitirá implementar o projeto civilizatório da
convivência enriquecedora, emancipatória e solidária. Uma tal convivência ― aspiração
e vocação do humano ― encontra eco na ancestral sabedoria africana, que ao cunhar o
termo ubuntu ofereceu a todos nós os nutrientes com os quais cultivar a nossa raiz
comum: “Sou quem sou por aquilo que todos somos”.
Lia Diskin
Co-fundadora da Associação Palas Athena
Coordenadora do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz
Sócio-fundadora da Rede Gandhi
Notas
1. Swidler, Leonard, O Sentido da Vida: No limiar do terceiro milênio; São Paulo, Editora
Paulus, 1996, p.73.
2. Tinbergen, N., The Study of lnstinct; Londres, Oxford University Press, 1951, pp.7-10.
3. Citado em Pike, Graham e David Selby, Educação Global: O aprendizado global; São Paulo,
Editora Textonovo, 1999, vol. 1, p. 104.
4. La Experiência Filosófica de Ia India; Madrid, Editorial Trotta, 1997, Introdução.
5. Entre as várias obras de Hannah Arendt já traduzidas ao português, recomendamos a
leitura de: As Origens do Totalitarismo e A Vida do Espírito.
6. Cornford, Francis M., De la Religión a Ia Filosofia; Barcelona, Editorial Ariel, 1984, p.62.
7. Sobrevilla, David et al., Ética y Diversidad Cultural; México, Fondo de Cultura Económica,
1993, p.69.
8. Mateos Garcia, Angeles, A Teoria dos Valores de Miguel Reale; São Paulo, Editora Saraiva,
1999.
9. Kung, Hans , Projeto de Ética Mundial; São Paulo, Edições Paulinas, 1992.
10. Freire, P., “Año Mundial de la Paz”, El Correo de la UNESCO, dezembro de 1986.
11. Todos eles se encontram, na íntegra e em português, no site do Comitê Paulista para a
Década da Cultura de Paz, coordenado pela Associação Palas Athena em parceria com a
UNESCO. www.comitepaz.org.br

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