quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Convivencialidade, Autopoiesis e Aprendizagem Organizacional

Convivencialidade, Autopoiesis e Aprendizagem Organizacional
Ruben Bauer
1. Autopoiesis (a Criação de Si) – e Gestão do Conhecimento
Autopoiesis foi a palavra que os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela
cunharam para explicar a vida. Poiesis é o ato criativo (mesma raiz de “poesia”); a vida é auto-
poiética, ela cria, ela inventa e reinventa a si própria – a partir de si própria.
Mas desde Darwin já não se sabe que a vida se adapta às alterações no meio ambiente,
alterações externas a ela? Como poderia então ser o referencial para a renovação da vida algo
exclusivamente interno?
Maturana e Varela sabiam que a realidade externa muda; que os seres vivos de alguma forma
“tomam conhecimento” dessas mudanças; e que esse processo os leva a mudar também. Eles
debruçaram-se então sobre o processo da cognição, sobre o que seria esse “tomar
conhecimento”.
E concluíram que qualquer conhecimento a respeito da realidade externa é uma criação interna.
Ou seja, para o “conhecedor”, a realidade em si não existe, só existe a sua realidade,
internamente criada. Isso renega a visão tradicional, pela qual os nossos cinco sentidos são
canais que provêem acesso direto à realidade, e o “conhecimento” seria uma representação, uma
imagem da realidade, a mais fiel possível.
O que Maturana e Varela comprovaram foi que os seres vivos não são agregados de partes, são
padrões de interrelacionamentos entre essas partes, padrões dinamicamente renováveis. E que a
realidade não “entra” em nós, de fora para dentro, pela visão e demais sentidos; ela pode no
máximo estimular uma reorganização desse padrão de interrelacionamentos – um processo
interno, autônomo.
Para todo e qualquer ser vivo, não existe o mundo em si, cada um cria o seu próprio “mundo”. E
esse mundo é criado e renovado a partir daquilo que o ser... é – até aquele instante. E esse ato
criativo faz com que o ser... mude. Agora, no instante seguinte, ele tornou-se um ser que renovou
o seu mundo – que “conheceu”.
Uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, Estados Unidos. O monitor faz um breve discurso:
“palavras são só palavras, cada um interpreta de um jeito. Mas hoje, nada de palavras. Vocês vão
travar contato direto com a realidade, nua e crua”. Ele pega então dois frascos de vidro, enche um
com água e outro com álcool. Pega um pequenino verme e deixa-o cair no frasco com água. O
verme afunda, alguns segundos depois começa a movimentar-se, chega à superfície e nada até a
borda.
O monitor apanha novamente o verme, deixando-o cair desta vez no frasco com álcool. Ele
novamente afunda, só que dessa vez permanecendo inerte. Instantes depois ele começa a se
desintegrar. Depois de algum tempo, dele só resta um borrão acinzentado turvando a
cristalinidade do líquido.
O monitor pergunta: “todos viram?”. Sim, todos. “E a que conclusão podemos chegar?”. Uma mão
se levanta: “Entendo que, se bebermos álcool, não teremos vermes”.
Não há realidade “conhecível” independente da mente do “conhecedor”. Aquele alcoólatra havia
renovado o seu conhecimento sobre a sua realidade – tendo por referência quem ele era, um
alcoólatra. Aquilo que somos determina os limites para o que conhecemos, ao mesmo tempo em
que o que vamos conhecendo vai aos poucos renovando aquilo que somos. Dizem Maturana e
Varela: “viver é conhecer, conhecer é viver”. Estar vivendo é estar o tempo todo criando para si
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uma realidade externa (conhecendo), num processo estimulado pela realidade propriamente dita
mas não determinado por ela, e sim pelo que somos. E estar “conhecendo” é estar o tempo todo
se renovando, reinventando quem somos – autopoiesis. Os orientais têm um ditado segundo o
qual “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”; o novo conhecimento só surge dentro
nós quando finalmente nos tornamos abertos a ele. No Ocidente, diz-se de outro modo: “o pior
cego é aquele que não quer ver”.
Não há realidade “conhecível” independente da mente do “conhecedor”. Como não? Pode o céu
não ser azul? Pode o Sol não ser quente? Se de fato pode, então por que todo mundo
(literalmente todo mundo) teima em ver um céu azul, em sentir um Sol quente? Por que a todos
nos parece estarmos diante de uma realidade única? Maturana e Varela sustentam que indivíduos
de uma mesma espécie submetidos a um mesmo meio acabam por desenvolver histórias
pessoais bastante parecidas e, portanto, acabam criando mundos próprios também bastante
parecidos.
Podemos trocar de exemplo: Ao invés do céu azul e do Sol quente, tomemos “a Terra é redonda”
e “A Terra gira em torno do Sol”. Durante quantos milênios os navegadores se aterrorizavam com
a possibilidade de perder a costa de vista, achando que cairiam pela borda do mundo? E durante
quantos milênios a humanidade inteira achou que era o Sol que girava em torno da Terra?
Homens como Copérnico, Galileu e Kepler foram tidos como loucos (ou hereges, o que à época
não era muito diferente), porque seu “mundo” era francamente contrário ao dos demais. O
“mundo” então vigente nada mais era que o “conhecimento” da “realidade” – afinal, os barcos
desapareciam após a linha do horizonte; e o Sol nascia de um lado, girava por sobre nossas
cabeças, e se punha do lado oposto. É ilimitado o número de outros exemplos possíveis: no
“mundo” que inicialmente só Gandhi via cabia uma Índia independente da Inglaterra sem o
recurso à violência; seu feito notável foi ter conseguido compartilhar essa sua “realidade” com
milhões de compatriotas seus.
Conhecimento tácito e conhecimento explícito, conhecimento individual e conhecimento
organizacional – gestão do conhecimento. Onde nisso se encaixa a biologia autopoiética?
Comecemos pelo conceito de conhecimento tácito.
O conceito de informação é inventado pelo homem por volta da década de 30, com a cibernética
de Wiener e a teoria geral dos sistemas de Bertallanfy, mas populariza-se a partir da década de
60 com o advento do computador – seu descendente direto. O fantástico desenvolvimento que se
seguiu embaralharia por demais os conceitos de informação e conhecimento, acabando
erroneamente por tornar este um subconjunto daquele: nem toda informação seria conhecimento,
a maioria era somente números, e números não passam de dados; mas todo conhecimento de
alguma forma armazenado em meio magnético seria informação. Mesmo um livro, uma forma
milenar de transmissão de conhecimento, passou a ser também considerado informação, só que
armazenada em bibliotecas ao invés de computadores.
Quando nos idos dos anos 70 os acadêmicos se depararam com a necessidade de conceituar
uma espécie de conhecimento que não seria passível de formalização, por estar introjetada no
indivíduo, imbricada à sua trajetória pessoal de vivências, crenças e sentimentos, eles cunharam
o termo “conhecimento tácito”. E, em contraposição, todo o restante, todo o conhecimento
formalizável seria doravante denominado “conhecimento explícito”.
O que a autopoiesis nos diz é que viver é conhecer, conhecer é viver – para cada ser humano, a
trajetória de seu encaixe com o seu “mundo” é única e, portanto, seu conhecimento também é
único. Em outras palavras, tudo seria conhecimento “tácito”.
No entanto nós, historicamente, fomos levados a validar primeiro a idéia do conhecimento
explícito como um subconjunto da informação, para só depois perceber que havia um “caso
particular”, o tal do conhecimento tácito. Por isso já não é tão simples aceitar que aquilo que se
hoje chama de “conhecimento explícito” (livros, documentos, bases de dados em computadores)
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seja tão somente informação. Mesmo que este acervo tenha sido produzido por alguém de grande
conhecimento, ele não é conhecimento, é apenas estímulo para o desenvolvimento de
conhecimentos individualizados dentro de cada indivíduo que a ele tenha acesso.
Então, não existem conhecimento explícito e conhecimento tácito, “conhecimento explícito” é
informação, “conhecimento tácito” é conhecimento, e essas são coisas distintas, e estamos
conversados. Acabou? Não, só começou, o melhor vem agora. Considerando-se que já
ingressamos na assim chamada Sociedade do Conhecimento, adquirir consciência de que
qualquer conhecimento está nas pessoas e que os computadores são meros armazenadores de
informações desloca significativamente nosso eixo de referência – das máquinas para os seres
humanos.
A maior parte de tudo o que se fez nas últimas décadas sob a alcunha de “gestão do
conhecimento” partiu da premissa de que o conhecimento poderia ser manuseado como algo
independente das pessoas que o criaram e que o utilizarão; buscou-se, em essência, controlar o
conhecimento (compilar, armazenar, recuperar, disseminar, classificar, disponibilizar, tratar; em
suma: organizar o conhecimento). A informação pode perfeitamente ser manuseada e controlada:
planilhas, livros, documentos, bases de dados, o que for. Mas o conhecimento não.
Lembremo-nos do termo “sistemas especialistas”. Era o estado-da-arte, ao final da década de 80.
Sistemas informatizados absorvendo o conhecimento de especialistas para a solução de
problemas complexos; e tal como os seres humanos, resolvendo-os melhor à medida que mais
problemas são resolvidos. Aprendendo. O que era um sistema especialista? Um “robô de
conhecimento tácito”. Dito hoje, soa patético. No mundo inteiro, isto quase sempre acabou em
frustração, malgrado as fortunas investidas.
Infelizmente, na maioria das empresas que imaginam estar “gerindo” o conhecimento, tecnologia
da informação (TI) ainda vem em primeiro lugar. Resta às pessoas adaptar-se.
Mas aos poucos o quadro começa a mudar. Prusak e Davenport descrevem a progressiva
migração dos modelos centrados em repositórios de conhecimento para modelos centrados em
mapas de conhecimento. Repositórios são bancos de dados, ainda que flexíveis, como é o caso
das listas de discussão da Internet. Mapas, como o nome já diz, são guias que ajudam as
pessoas a localizar outras que presumivelmente detenham o conhecimento procurado. Dizem
eles: “como regra geral, quanto mais rico e tácito for o conhecimento, mais tecnologia deverá ser
usada para possibilitar às pessoas compartilhar aquele conhecimento diretamente. Não é boa
idéia tentar conter ou representar o próprio conhecimento usando tecnologia”.
Se o conhecimento é referido à individualidade de cada “conhecedor”, a melhor de todas as
formas de compartilhamento é o contato direto. Intermediários - mesmo os de alta tecnologia -
tendem a dissipar toda a riqueza de nuanças da comunicação. É óbvio que a tecnologia ajuda a
superar constrangimentos de tempo (por exemplo, e-mail) e espaço (por exemplo, telefone ou
videoconferência) mas, o que ela pode fazer quanto à qualidade da comunicação? Tratam-se de
aspectos como abertura, franqueza, saber ouvir, saber expressar-se, procurar compreender o
contexto do outro (seus interesses, preocupações, valores etc. – ou seja, suas histórias) para
compreendê-lo melhor. Novamente conforme Davenport: “A confiança organizacional e o contexto
interpessoal necessários a uma verdadeira organização em rede não se baseiam apenas em
tecnologia. Ao contrário, os relacionamentos necessitam ser inicialmente construídos em
encontros face-a-face”. Trata-se de... convivencialidade.
E ganha força o conceito de conhecimento compartilhado: se todo conhecimento reside dentro
das pessoas, é preciso que estas cheguem a acordos mínimos quanto a questões como “qual é o
nosso negócio?” ou “quem são nossos clientes?”. E isso também é algo que se constrói face a
face - convivencialmente. Não menos importante, tais consensos precisam ser dinâmicos,
renováveis à medida que o ambiente externo muda – a qualidade da autopoiesis da organização.
Também para isso, é preciso que haja convivencialidade.
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Quais conhecimentos compartilhados a humanidade já renovou? De “a Terra é chata” para “é
redonda”, de “a Terra é centro do Universo” para “gira em torno do Sol”. Na sociedade do
conhecimento, uma nova realidade pode já estar diante dos nossos olhos, mas nossa história,
nosso “viver” pregresso não nos permite “conhecê-la” ainda. Ousemos imaginar: qual tem sido o
vínculo, ao longo de toda a história da humanidade, entre a geração e a distribuição de riqueza? A
escassez. Nunca se gerou riqueza suficiente para distribuir a todos. E por quê? Porque os
recursos eram finitos. Terras, na era agrícola, e capital, na era industrial. Se eu der a alguém as
terras ou o dinheiro que possuo... simplesmente os perco. Mas o conhecimento é um recurso
ilimitado, um ativo que aumenta com o uso. Se eu exponho a alguém meu conhecimento, não o
perco; e esse alguém, ao combinar seu conhecimento prévio com o que apreende daquilo que
falo, chega a novos insights – uma expansão do conhecimento. Para Buckminster Fuller, o grande
propagador do conceito de sinergia, o problema do esgotamento dos recursos naturais do planeta
(finitos) encontra resposta na inesgotabilidade da criatividade e da inteligência humanas (infinitas);
pode-se contrabalançar o esgotamento dos recursos naturais através de formas criativas de uso
que minimizem o consumo de recursos e maximizem os resultados. Para Paul Romer, “idéias são
as instruções que nos deixam combinar recursos físicos limitados em arranjos cada vez mais
valiosos”.
Pela primeira vez em toda a sua história, a humanidade está se tornando capaz de gerar riqueza
numa escala sem precedentes. Mas não a distribui adequadamente – porque não sabe como
fazê-lo, nunca o fez. Continua a concentrá-la porque foi só isso o que aprendeu a fazer ao longo
de milênios, por medo da escassez. Nós apenas não conseguimos ainda nos libertar desse medo,
perceber que ele já não tem mais razão de ser; as embarcações não cairão ao atravessar a linha
do horizonte. Estamos, finalmente, nos tornando aptos a construir sociedades simultaneamente
livres e justas.
2. Convivencialidade
“À medida em que eu domino a ferramenta, eu preencho o mundo com sentido; à medida em que
a ferramenta me domina, ela me molda sua estrutura, e me impõe uma idéia de mim mesmo” -
Ivan Illich
Convivencialidade é algo que o ser humano sempre teve ao longo de milênios (embora sem se
dar conta disso), e foi aos poucos – e num ritmo acelerado de uns 300 anos pra cá – perdendo.
Os povos antigos viam, em cada ente da natureza, fosse uma árvore, pedra, estrela ou onda do
mar, a manifestação da vontade de seu Deus ou deuses. Profundamente místicos, era assim que
eles também viam a si próprios – uma manifestação toda especial da vontade Divina, bem
entendido, mas apenas uma manifestação a mais. Seria temerariamente abusivo dispor das
demais, afinal não eram suas, pertenciam a Deus; o homem deveria ao menos pedir licença se
quisesse usá-las. E assim, o pastor de ovelhas usava para si a criação de Deus, delas extraindo
carne, leite, lã e novas ovelhas mas, de tempos em tempos, ele sacrificava em louvor ao seu
Deus a mais bonita, a mais viçosa de seu rebanho. Era como se ele Lhe dissesse: “eu dispus, em
meu benefício próprio, do que não era meu, era Seu; agora, estou repartindo Contigo uma parte
dos frutos do meu trabalho”. A morte da ovelha significava a restituição de sua condição sagrada;
uma vez sacrificada, não haveria mais leite nem lã, a carne não iria para a mesa. Não haveria
mais “uso”.
Era assim a convivência – um diálogo com a natureza.
Penso, logo... existo. Aos poucos, esse meu existir vai deixando de ser “porque Deus quis” e vai-
se tornando “porque Eu penso”. E, se agora sou eu quem racionalmente atribui valor às coisas,
ora, que desperdício esse de sacrificar ovelhas, e logo a mais bonita de todas - nada disso. O
açúcar faz a riqueza e a glória das cortes de Portugal? Derrube-se a mata atlântica nordestina
para abrir espaço aos canaviais. O carvão e o petróleo movem o mundo? Então use-se a
atmosfera como depósito de gás carbônico. A natureza vai sendo aos poucos instrumentalizada,
transformada em ferramenta a serviço do homem. Sem espaço para o diálogo.
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Já a dominação do homem pelo homem é algo que sempre existiu (basta lembrar a escravidão),
mas havia sempre algum sacerdote de plantão para justificar que aquela era de alguma forma a
“vontade de Deus”. Mas, e hoje? Assistimos ao genial “Tempos Modernos” do Chaplin, a
dominação está lá, o homem transformado em ferramenta, mas cadê o sacerdote? A dominação
assumiu uma face mais sutil, a da “instrumentalização”, ela tornou-se parte integrante da marcha
rumo ao progresso. Em nome do progresso, hoje convivemos “naturalmente” com danos nas
articulações das mãos até então inéditos para a humanidade, e banalizamos tais aberrações
chamando-as de LER (lesões por esforços repetitivos), como se fossem uma mera unha
encravada a mais. Costumava-se há bem pouco tempo questionar os eventuais malefícios da TV,
mas as novas gerações já não conseguiriam imaginar um mundo sem a parafernália de
videogames, chats, ICQ, jogos eletrônicos até no celular... quantos seriam capazes de ter a calma
e a paciência suficientes para ler um livro? Vivemos em megalópoles amontoados a milhões de
outros, mas nos sentimos cada vez mais solitários... E quem determina quais são as nossas
“necessidades”? Nós mesmos? Ou a indústria da publicidade que nos induz a sentirmo-nos
carentes de coisas que sequer sabíamos que existiam?
Pior, não são apenas ou outros e a natureza que nós transformamos em instrumento para nosso
“uso”. Como convivemos com nosso próprio corpo? Dialogamos com ele, sabemos pressentir
seus sinais de alerta? Vamos dormir ao sentir sono, esperar sentir fome para comer (e sentir que
a fome passou para parar de comer)? Ou usamos (e abusamos de) nosso corpo como
ferramenta, impondo-lhe um modo anti-natural de vida, sem sequer nos apercebermos disto?
Fomos perdendo assim a convivencialidade espontânea e natural que tínhamos com o mundo,
com os outros, conosco mesmo.
Falar do taylorismo ou dos padrões de consumo é até óbvio. Elucidativo mesmo é ver Ivan Illich
demonstrando em livros como “A Convivencialidade” ou “Sociedade sem Escolas” o predomínio
da instrumentalização (o oposto da convivencialidade) nos campos da educação e da saúde.
Vejamos o caso dos transportes: em cerca de apenas um século, o homem passou da libertação
proporcionada pelos veículos motorizados para a escravidão imposta pelo automóvel: as pessoas
dedicam ao deslocamento motorizado cada vez mais tempo do que julgam que ele lhes poupa.
Illich em 1972 estimou que um norte-americano típico gastava mais de 1.500 horas por ano com
seu automóvel: sentado nele, em movimento ou estacionado; trabalhando para pagá-lo(!), para
pagar a gasolina, os pneus, a manutenção, o seguro, os impostos e as multas. Ele gasta então 4
horas por dia(!!) com seu carro, quer usando-o, cuidando dele, ou trabalhando para pagar seu
custo. E ele precisa dessas 4 horas para percorrer em média 27 quilômetros por dia, ou menos de
7 km/h! Francamente, uma bicicleta faria muito melhor. E não foram incluídos nesse cálculo o
tempo gasto com acidentes (hospital, tribunais), roubo (delegacias, seguradoras), o tempo
assistindo-se na televisão a publicidade dos novos modelos de carros... E Illich não tinha idéia do
que significa hoje deslocar-se de carro nos engarrafamentos das ruas de uma cidade como São
Paulo! Illich nos mostra que o automóvel nos rouba tempo, ao invés de poupá-lo. Ele restringe a
convivencialidade.
...
Auto-organização. Aprendizagem organizacional. Comunidades de prática. Organizações em
rede. O que isto teria a ver com convivencialidade? Tudo.
O maior potencial para a criatividade e a inovação está na diversidade, e nas equipes que dela
tomam partido; para Dorothy Leonard, “a inovação ocorre nas fronteiras entre as mentes, não
dentro do território provinciano de uma só base de habilidades de conhecimento”. O problema é
que a grande maioria das pessoas é ensinada desde que nasce a valorizar o convívio com quem
pensa igual a elas; nas empresas, não é diferente.
Eficiência é fazer melhor aquilo que já se sabe que se tem de fazer. Inovação e evolução é
descobrir o que de novo se deve fazer, diante de um mundo que muda cada vez mais rápido.
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Aquela requer o pensar igual, estas o pensar diferente. Mas as pessoas foram preparadas para
valorizar o convívio com quem pensa diferente delas? Consideremos: como costumam ser as
reuniões nas empresas? As pessoas expõem com franqueza e abertura tudo o que pensam? E
após ouvir as idéias dos outros, elas sentem-se à vontade para comentar, criticar, propor
alterações?
Existe conflito nas organizações? Quando em uma palestra dou minha resposta a esta pergunta
costumo ver olhos arregalando: “muito pouco”. A maior parte das pessoas tem um verdadeiro
pavor dos conflitos, e justamente por isso elas evitam emitir suas opiniões de forma plena. Elas
“medem” suas palavras, sentem aonde estão pisando, arriscam aos poucos, recuam se for o
caso. Elas sabem que os outros, tal como elas, também temem a exposição de suas idéias se
estas puderem vir a ser confrontadas. Temem que isso represente risco para sua imagem
profissional perante os outros.
As raízes para esse medo encontram-se na forma cartesiana e linear de se pensar. Todo efeito
deve ter uma causa correspondente, todo problema deve ter uma única explicação correta. Peter
Senge diz que, desde que nascemos, alguém sempre tem a resposta “certa”: primeiro os nossos
pais, depois nossos professores... acaba sendo natural esperarmos que algum especialista, ou o
chefe, ou um colega mais experiente tenha a responsabilidade de “acertar” a solução do
problema; até temos também a nossa resposta “certa” mas, se ela estiver em posição frágil para
“competir” com as demais, por que nos arriscar? Senge nos diz que a saída está em
compreendermos que a maioria dos problemas são de natureza complexa, e que por isso não
admitem uma, mas várias soluções possíveis. Não há uma resposta “certa”. Se não há, a busca
da resposta “melhor” passa por conjugar os diferentes insights contidos nas diferentes respostas
possíveis das pessoas, as quais principiam nas suas diferentes percepções e interpretações da
mesma realidade. A isso, que tenderíamos a chamar de confusão, precisamos aprender a chamar
de riqueza potencial.
A compreensão de que ninguém pode ter a resposta certa é libertadora, se não precisarmos mais
sustentar nossa opinião contra as demais; ao ouvir uma crítica ao que dissemos, poderemos
pensar: “que bom, alguém está me dando uma oportunidade para refletir sobre as limitações de
minhas idéias, e aperfeiçoá-las”. É uma chance de aprendizado que, em sendo recíproca,
configura um diálogo – aprendizagem organizacional. Convivencialidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BOHM, David. “Sobre o Diálogo” (mimeo). Transcrição e edição de conversa em 1989 por Phildea
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DAVENPORT, Thomas H. “Saving IT’s Soul: Human-centered Information Management”. Harvard
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DAVENPORT, Thomas H. e PRUSAK, Laurence. Conhecimento Empresarial: Como as
Organizações Gerenciam o seu Capital Intelectual. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia. In: HABERMAS, J. Técnica e Ciência
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ILLICH, Ivan. A Convivencialidade. Lisboa: Europa-América, 1976.
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von KROGH, Georg e ROOS, Johan. Organizational Epistemology. London: MacMillan, 1995.
SCHEIN, Edgar H. “Diálogo, Cultura e Aprendizado Organizacional” (mimeo). Tradução e
adaptação de André L. Alckmin, s/d.
SENGE, Peter. A Quinta Disciplina: Arte a Prática da Organização de Aprendizagem. 2. ed. São
Paulo: Best Seller, 1998.

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